terça-feira, 31 de março de 2009

“Tu és pó, e em pó te hás de tornar”

Carlos Nougué
Por terem Adão e Eva comido da Árvore da Ciência do Bem e do Mal, toda a sua descendência passou a nascer em dupla obscuridade: a do pecado e a da ignorância. E, embora com a queda adâmica nosso intelecto não se tenha corrompido em si, o fato é que nossa razão, em maior ou menor intensidade segundo diversos fatores, é não raro enceguecida pelas paixões ou outras causas. São as paixões, por exemplo, o que faz com que os homens não apreendam por si mesmos um ou mais itens da lei natural − sendo, porém, potencialmente capazes de fazê-lo pela propensão habitual chamada sindérese, de que todos somos dotados. Por isso, aliás, é que o Senhor decretou os Dez Mandamentos: para lembrar aos homens aquilo que eles poderiam apreender por si mesmos, mas não o conseguem fazer perfeitamente (quase sempre longe disso) por serem filhos do pecado.

Vítima também da queda do homem é certa operação de nossa razão especulativa: a operação de indução, ou seja, a que remonta às causas ou princípios a partir de seus efeitos. É o modo de operar próprio das chamadas “ciências de credibilidade”, como a História, cujos argumentos se dizem quia a posteriori em contraposição aos argumentos das chamadas “ciências de autoridade”, cujos argumentos se dizem quia a priori exatamente porque, ao contrário daqueles, descem aos efeitos a partir de suas causas ou princípios. Pois bem, qualquer de nós, não fosse o nascer naquela dupla obscuridade, também seria capaz de quaisquer raciocínios quia a posteriori; por isso dizia São Paulo que eram réus de pecado contra Deus os pagãos que não Lhe tinham reconhecido a existência e o fato de ser Criador, já que pelos seus efeitos, a saber, pelas criaturas saídas de sua Arte suprema, seria possível fazê-lo. Como se dera com os Dez Mandamentos, outra vez intervém a misericórdia do Altíssimo e sua vontade de salvação, e Ele ensina pela Revelação também o que poderia ser apreendido pela só razão especulativa do homem se não tivesse havido o pecado; ensina, portanto, não apenas mistérios interiores e operativos da Santíssima Trindade, insondáveis para o intelecto humano. Dizia Santo Tomás de Aquino que, se não nos tivesse Deus revelado a respeito de Si até o cognoscível pelo intelecto humano, só muito poucos, e após muito tempo, e ainda assim com mescla de mais ou menos erros, O poderiam conhecer, impossibilitando-se assim a salvação de grande parte dos eleitos. Não é justamente o que vemos na história da grande filosofia grega com relação a Deus? Primeiramente Xenófanes destrói a concepção antropomórfica dos deuses; depois Anaxágoras de Clazômenas atribui a formação do mundo a uma inteligência, a Inteligência divina, constituída porém de alguma matéria; depois Sócrates, o impressionante Sócrates, afirma a unicidade do Deus (sem todavia eliminar a multiplicidade de deuses, que passam a ser algo como manifestações d’Aquele) e que Ele é não só pura inteligência, e inteligência ordenadora e onisciente, mas inteligência providente, sendo Providência não só com relação ao cosmos, mas especialmente com relação ao homem − que imenso passo!; depois Platão lhe segue as descobertas, mas só parcialmente, e põe Deus (o Demiurgo informador do caos) um degrau abaixo da idéia do Sumo Bem (o que no máximo estava implícito no socratismo, em razão de suas aporias); Aristóteles, por fim, ao mesmo tempo que com seu Primeiro Motor Imóvel prepara quatro das cinco vias tomistas que provam o ser de Deus (a outra é antes platônica), retrocede gravemente com relação à descoberta socrática do Deus-Providência: a Divindade, para o Estagirita, nem sequer conhece os seus efeitos e, portanto, tampouco o homem, porque para o Filósofo, se o Theós, como nóesis noéseos (“pensamento de pensamento”, ou seja, pensamento de si mesmo), conhecesse os efeitos que causa, se rebaixaria e perderia dignidade; ao que responde o Angélico: se, com efeito, a inteligência que Deus tem de Si é perfeitíssima, tanto mais perfeitamente Ele entenderá seus próprios efeitos, pelo fato mesmo de estes estarem virtualmente contidos n’Ele enquanto Principio. (“... dado que do primeiro principio, que é Deus, dependem o céu e toda a natureza, é evidente que Deus, ao conhecer-se a Si mesmo, conhece tudo”, In Met., nn. 2614-2615; cf. também Cont. Gent. I, xlix-l; II, xi). Ademais, e isto é o central quanto ao que nos interessa aqui, durante centenas de anos grandes inteligências como as de Xenófanes, Anaxágoras, Sócrates, Platão e Aristóteles descobriram, como vimos, muitas verdades com respeito a Deus, mas foram incapazes de vê-Lo como criador de tudo; e, como diz o Aquinate numa de suas últimas obras, o opúsculo Contra murmurantes, se é verdade que não podemos saber pela razão natural que o mundo foi criado no tempo (porque poderia, razoavelmente, ter sido criado co-eternamente a Deus mesmo), por outro lado, contudo, é perfeitamente possível à razão natural constatar, pelas criaturas, ou seja, mediante um raciocínio indutivo ou quia a posteriori, que Deus é criador de tudo, e não apenas seu ordenador ou informador.

Pois com respeito à alma humana, cujo conhecimento, como afirmou pela primeira vez ainda Sócrates, também resulta de um raciocínio indutivo ou quia a posteriori, igualmente andou a grande filosofia grega por caminhos profícuos, mas tortos. Para os físicos ou naturalistas pré-socráticos, a alma é composta de algum tipo de matéria, mais sutil, e não necessariamente tem caráter individual; para os órficos e, de maneira geral, os pitagóricos enquanto órficos, ela é um “demônio” ou emanação da Divindade que, por uma culpa original nunca explicada, cai prisioneira no cárcere de um corpo, e não se identifica, muito pelo contrário, com o eu racional e consciente − puro gnosticismo. Com Sócrates ela passa corretamente a identificar-se com o eu consciente e racional, perde qualquer mescla de matéria e ganha a legítima primazia sobre o corpo, mas nem por isso é afirmada claramente como espiritual e pois imortal (conquanto nosso grande filósofo pendesse para esta solução; cf. Platão, Apologia de Sócrates). Com Platão, embora a alma mantenha algumas conquistas socráticas e comece a ser entendida em suas diversas potências, ela contudo torna a cair prisioneira do gnosticismo órfico, e passa da primazia sobre o corpo para a necessidade de ver-se livre dele (enquanto para Sócrates, corretamente, o corpo era um instrumento da alma); e, se é verdade que na filosofia platônica a alma se torna, enfim, definitivamente espiritual, ela porém passa a ser dita, mais que imortal, eterna, ou melhor, incriada. Com Aristóteles, por fim, conquanto a alma adquira uma feição mais definitiva (mas veja-se que a voluntas só será reconhecida, ainda que confusamente, por Cícero, às portas já do nascimento do Filho do homem) e se mantenha firmemente espiritual (como dizia o Estagirita, a matéria não tem potência para a alma), ela, todavia, contraditoriamente, morre com o corpo; e, embora o Filósofo admita para ela uma origem divina, ainda contraditoriamente não lhe confere o caráter de coisa criada, precisamente porque, como vimos mais acima, para nenhum dos gregos de antes de Cristo Deus é criador de nada. O conhecimento de Deus como criador de tudo a partir do nada era privilégio, antes de Cristo, do povo judeu, por única revelação de Deus mesmo; e o mesmo se diga do conhecimento da alma enquanto espiritual e imortal, embora este só se dê cabalmente com o cristianismo (em especial com Santo Tomás de Aquino e, sobretudo, com o próprio magistério da Igreja).

Com o judeu-cristianismo, soube o homem por revelação de Deus que ele fora criado, no Jardim do Éden, num estado de justiça que incluía não só a imortalidade da alma (o que resulta de sua própria natureza espiritual), mas também a perenidade do corpo graças a uma série de dons preternaturais e, em particular, dos frutos da Árvore da Vida, que o manteriam imperecível até a hora eleita por Deus para a assunção gloriosa do homem inteiro à bem-aventurança. A morte do corpo é a mais grave das penas temporais impostas ao homem pelo pecado de Adão e Eva; tão grave, que a redenção do homem não se podia dar senão com a morte − a morte do próprio Redentor: “Assim como por um homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte, assim também a morte passou a todos os homens”, diz São Paulo (Rom., V, 12). E, se com o cristianismo sabemos que a alma dos bem-aventurados já pode ter, após a morte do corpo, a visão beatífica da essência de Deus, o que já é ter atingido seu Fim Último, nem por isso deixará essa alma de se encontrar, por outro ângulo, em estado de incompletude, uma vez que a completude do homem é a da união substancial de alma e corpo − união que não se refará senão com a ressurreição dos corpos no fim dos tempos. Nem por aquilo, ademais, a morte do corpo deixa de ser um castigo; se o deixasse de ser, perderia todo o sentido a morte redentora de Cristo. E qualquer castigo é um mal; mal de pena, e não mal de culpa, que é o pecado; e, como mal de pena, traz luto e lágrimas, lágrimas que, sim, podem secar-se e se secam com o lenço da Esperança cristã, mas que não deixam de ser lágrimas: Frei Reginaldo de Piperno só com a ajuda de Deus se pôde consolar da morte de seu Paizinho amado, Santo Tomás de Aquino; São Bernardo, após muito se conter, acabou por prantear a morte da irmã; e não terá chorado Nossa Senhora, com o coração transpassado de dores, a morte de seu Filho-Deus? e não chorou o mesmo Cristo a morte do amigo Lázaro?

Assim somos os católicos: sabedores da imortalidade da alma e do destino eterno do homem, não deixamos de ver na morte do corpo o castigo que é, sem porém desesperar, porque nos guiamos nesta terra de exílio pela virtude da Esperança e pela firme confiança em Deus, que é o fruto mais eminente daquela Esperança. Assim somos... ou deveríamos ser. Sim, porque infelizmente boa parte dos católicos de hoje, incluindo muitos dos que tão bravamente lutam contra os ataques do mundo moderno à lei natural, acabam por extrapolar da justíssima luta, por exemplo, contra o aborto e pelo direito à vida para a luta incorreta contra algo erroneamente chamado “eutanásia” (a palavra grega euthanasía quer dizer “morte sem sofrimento”) e contra a pena de morte. Da pena de morte falarei no segundo artigo depois deste; aqui, agora, falarei daquilo que erroneamente vem sendo chamado “eutanásia”. Mas diga-se desde já: o ser contra aquela e o ser contra este radicam na mesma coisa, a saber, o fato de boa parte dos católicos atuais, ainda que não raro sem muita consciência disto, assumir uma visão própria de um mundo ateu, para o qual a vida humana é apenas a que termina com a morte do corpo; o assumir uma visão naturalista (ou antes falso-naturalista), que atribui ao homem o destino último de ser pasto de vermes, e que por isso mesmo considera gravemente pecaminosa qualquer forma de tirar a vida a outro ou a si mesmo. Mas no Decálogo, depois de proibir, no Quinto Mandamento, a morte injusta do próximo, não diz Deus que “aquele que pecar com uma besta seja punido de morte” e que não se deve deixar “viver os que consultam os espíritos”, etc. (Êx., XXII, 18-19)? Terá Deus mudado de opinião? Ter-se-á equivocado? E não disse Pio XII que não é a autoridade que tira a vida do condenado, mas o condenado que pelo seu ato gravemente culpável já perdeu o direito à vida? E não escreveu Santo Agostinho que o verdugo “tem lugar necessário nas leis e é incorporado à ordem com que se deve reger uma sociedade bem governada” (De ordine, Lib. II, c. IV, 12)? Mas deixemos para o prometido artigo a questão da pena de morte, e tratemos agora daquilo que vem sendo erroneamente chamado “eutanásia”.

Vita est motus ab intrinseco”, diz Santo Tomás seguindo a Aristóteles. “A vida é um movimento intrínseco [que vem de dentro]”, o que vale para o conjunto dos entes animados − vegetais, animais ou humanos − e os distingue dos entes inanimados. “Quando uma pedra se move”, diz Arbogastus em “La mort encéphalique” (Courrier de Roma, junho de 2008, in Sim Sim Não Não, n. 163, novembro-dezembro de 2008), “quando uma pedra se move, é porque ela foi movida por alguém ou alguma coisa (força de atração). Ao contrário, o ser vivo tem em si mesmo a fonte de seu movimento (mudança de lugar, nutrição, crescimento, reprodução).” Ora, como dizia ainda Pio XII, “a vida humana [a vida do corpo humano, precisemos] continua na medida em que as ações vitais − diferentemente da simples vida dos órgãos − se manifestem espontaneamente ou com a ajuda de processos artificiais” (“Discurso sobre os problemas de reanimação”). Com efeito, um paciente de disfunções renais graves que só sobreviva graças a sessões de hemodiálise ou um paciente com grave doença cardíaca que permaneça vivo graças unicamente a um marca-passo não deixarão, obviamente, de estar vivos. Mas não podemos tratar a questão da vida sem a abordar pelo ângulo das relações entre corpo e alma.

A vida do corpo de um animal ou de um homem só o é graças à alma, que é a sua forma e seu primeiro ato (“A alma é o primeiro ato de um corpo em potência para ter vida”, diz Santo Tomás). Não obstante, para que a alma não só seja esse primeiro ato mas informe o mesmo corpo, constituindo com ele uma unidade substancial, é preciso que a matéria esteja suficientemente disposta para ser e para continuar informada pela alma. Tentemos entendê-lo: a forma de uma faca, ao contrário de sua matéria, que é oxidável, é em si mesma incorruptível; sucede, no entanto, que como sua existência depende indissociavelmente dessa matéria oxidável, a forma da faca desaparece à medida mesma que se vai oxidando a matéria metálica da faca. Mutatis mutandis, passa-se o mesmo nos animais: a morte é o exato instante em que o corpo se desorganiza de tal modo, que a alma (ou forma do corpo) já não o pode seguir informando, com o que perde o corpo, absolutamente, o seu princípio de animação. No homem, sem embargo, embora no momento da morte também ocorra aquela desorganização corpórea, dá-se algo radicalmente diferente. Enquanto nos animais, com a referida desorganização do corpo, a alma não só deixa de informá-lo, mas morre junto com ele porque também está indissociavelmente vinculada a ele, nos homens não: a alma, por espiritual e pois imortal, não morre com o corpo no momento daquela desorganização, mas se separa dele e sobrevive a ele para sempre. Neste preciso sentido, a alma dos animais está mais para a forma da faca, enquanto a alma dos homens está mais para as substâncias separadas que são os anjos. Essa diferença propriamente incomensurável traz conseqüências morais que, se não podem ser entendidas por um mundo ateu, não podem, todavia, ser esquivadas pelos católicos.

Sim, porque de tal diferença resulta plenamente válida “a distinção clássica entre meios ordinários e meios extraordinários para a conservação da vida e da saúde” (Arbogastus, ibid.) e um corolário certo: “ninguém é obrigado a utilizar meios extraordinários para conservar uma ou outra. Se, numa situação dada, a vida do paciente só puder ser mantida por meios extraordinários, é lícito suspender seu uso” (idem), suspensão portanto que só erroneamente poderá ser chamada “eutanásia”, sobretudo se se entende “eutanásia” como homicídio. Em poucas palavras: não há pecado em tal ato considerado em si; ao praticá-lo, “o paciente, sua família ou os médicos não cometem nenhuma falta moral. Eles apenas deixam a natureza, tendo chegado ao termo de sua carreira mortal, cumprir sua obra” (idem). Naturalmente, pode haver pecado, por exemplo, de ateísmo em quem por causa dele pratica aquele ato de retirar ou recusar meios extraordinários de manutenção da vida; assim como um juiz, conquanto condenando com justiça um criminoso à morte, o faz porém em sua alma com ódio e espírito de vingança pessoal, e pois sem caridade (veremos o que é esta caridade no artigo sobre a pena de morte). Em ambos os casos, o ato em si segue lícito ainda que seus agentes imediatos se movam por razões ilícitas. Mas para um católico, hão de ser lícitos tanto o ato como seu móvel.

Já dizia Santo Afonso de Ligório que não se deve prolongar a vida além de certo ponto. Como aplicá-lo ao caso que estamos tratando? Entendendo que “o uso dos meios ordinários e o abandono dos meios extraordinários situam o homem de bem e o verdadeiro cristão sobre um cume virtuoso entre dois abismos: o homicídio ou suicídio por omissão (quando os meios ordinários não são utilizados) e a obsessão terapêutica (quando os meios extraordinários são postos em ação sem esperança razoável de restabelecimento para o paciente). [...] Que os pacientes para os quais não existe tratamento moralmente lícito [será ilícito, por exemplo, o transplante de órgão retirado de alguém com morte cerebral, ou seja, ainda vivo] se preparem para a eternidade, seguros de ter feito o humanamente possível para conservar o corpo que o Criador lhes deu em usufruto” (Arbogastus, ibid.).

Que o façamos seguros, sim, de termos feito o possível para conservar o corpo que Deus nos confiou; mas certos, também, de que como filhos do pecado somos pó e em pó havemos de nos tornar; e sobretudo com a Esperança de que, pela graça eficaz de Deus e limpos do pecado mortal, Lhe iremos ver, amorosa e beatificamente, a face por todo o sempre. Amém.

Em tempo 1: Grande parte do que se disse neste artigo está sendo tratado tanto nas aulas ministradas em nosso Curso de Filosofia, cujos vídeos logo estarão disponíveis, quanto nas aulas ministradas no Mosteiro da Santa Cruz.
Em tempo 2: O próximo artigo será sobre Léon Bloy.

domingo, 29 de março de 2009

"TV" Contra Impugnantes — Santo Tomás, Heidegger, Zubiri, etc.

Sidney Silveira
Conforme o prometido, aos poucos estamos postando trechos de aulas ministradas em diferentes localidades. Permanecemos, ainda, no terreno dos questionamentos metafísicos e das advertências preliminares necessárias, em se tratando de falar de metafísica ao público de hoje. Adiante passaremos à abordagem teológica e veremos o quão certo estava Santo Tomás ao afirmar que a filosofia é ancilla theologiae, e que a teologia (doutrina sagrada) é a ciência das ciências — ciência especulativa e prática.

"TV" Contra Impugnantes - mais um vídeo

Sidney Silveira
está no ar a segunda parte da entrevista do Nougué ao Prof. Marcos Cotrim, da Universidade de Anápolis (GO).

sexta-feira, 27 de março de 2009

A angústia de Heidegger: o mundo do nada

Sidney Silveira
Num futuro distante, ou quem sabe na eternidade, talvez as principais correntes da filosofia dos séculos XIX e XX sejam vistas como tolas quimeras, como um momento dramático da história humana em que entre a inteligência e as coisas inteligidas e entre a vontade e as coisas queridas interpôs-se um abismo, um negrume, um vazio insuperável — e o homem viu-se apartado de tudo o que, até então, lhe dera algum esteio. Restou-lhe, apenas, a dolorosa imanência do próprio desespero.

Tal solipsismo foi respaldado por filosofias da incerteza, filosofias da angústia, filosofias do voluntarismo, filosofias do imoralismo, filosofias das fantasmagorias do inconsciente, filosofias do materialismo mais tosco*, filosofias do apriorismo transcendental mais absurdo, etc. Enfim, filosofias em que a inteligência humana desfigurou-se, por haver sido despojada do seu natural “habitat”, do seu modo próprio de operação (per abstractionem), como dizia Octavio Derisi, aguerrido tomista argentino sobre quem recebi, nesta semana, dois interessantes emails de leitores do Contra Impugnantes. Este desértico panorama intelectual e espiritual não poderia gerar senão sociedades aterradoramente violentas e individualistas. Sociedades infantilizadas e hiperssexualizadas. Sociedades do mais enfermiço hedonismo. Do mais insano niilismo. Sociedades de um humanismo superficial e politicamente correto. Sociedades de um democratismo daninho e autofágico. Em suma, sociedades, na raiz, liberais, na medida em que o liberalismo é essa caixa aberta de Pandora que, deixando em seu fundo uma esperança nada cristã, liberta e dá voz política a toda a sorte de erros, a pretexto de “liberdade”.

Exemplos do pensar quimérico e irracionalista são, incrivelmente, encontráveis em absolutamente todos os mais incensados pensadores dos últimos 150 anos. Quando Heidegger nos diz, por exemplo, que o Dasein (o ente humano) só tem a notícia de si a partir da angústia de saber-se para o nada e para a morte, e que somente a angústia nos retira da existência (ou “ec-sistência”) banal e nos insere na existência autêntica, está proclamando, com sua terminologia sui generis, o seguinte: é o nada que fundamenta o ser, particularmente o ser do ente humano — um tipo de ente que possuiria uma espécie antevisão desse “nada” fundamentador, e daí lhe adviria o que o filósofo alemão chama de “cuidado”: um projeto existencial cuja bússola é, tão-somente, a angústia. Em síntese, a última trama da existência do Dasein é, como diz o mesmo Derisi em seu Tratado de Existencialismo y Tomismo, uma dialética do tempo, um êxodo em direção a um futuro que se vai “nadificando”, até que o nada final da morte se apresente como o cume da existência, em sua totalidade. Uma existência breve e, essencialmente, solitária.

Heidegger teve décadas para concluir a propalada “ontologia fundamental” de sua obra máxima, Ser e Tempo. Não o fez. E não o fez porque, a meu ver, partindo de premissas tais, não haveria solução possível para uma série de aporias desse sistema cujo ápice só pode ser o seguinte: a auto-afirmação tirânica de uma existência angustiosa. Existência angustiosa e carente de um sentido maior. Sim, pois se somos um “quase-nada” entre dois nadas absolutos, e não havendo nada no ser para além do tempo, só restará ao Dasein um ativismo cego. Um agir baseado numa não-ética.

A “base” gnosiológica para essa estranha epopéia de Heidegger (mais poética do que, propriamente, filosófica) é o “ir às coisas mesmas” de Husserl. Ou seja: é o método fenomenológico da intuição pré-intelectiva, para o qual — como temos dito reiteradas vezes — não há a mais remota evidência, o menor argumento razoável que se possa aduzir. A propósito, é dessa mesma “base” que se vai valer Sartre para levar às últimas conseqüências o existencialismo niilista de Heidegger, que o autor alemão, ao final da vida, tentou amenizar ou desvencilhar do de Sartre, com a sua Carta sobre o Humanismo.

No entanto, entre Sein und Zeit de Heidegger e L’Être et le Néant de Sartre há muito mais do que similitudes: o segundo é a conseqüência direta da assunção de algumas das premissas do primeiro. Dirá o autor francês: “O homem é uma paixão inútil”.

A isto nos reduziram essas filosofias. A um non sense cego.

* Bem dizia Chesterton, com seu desconcertante humor, que o materialista é um sujeito que usa o espírito para dizer que só existe a matéria.
Em tempo1: Noutra oportunidade, falaremos sobre o estudo que Heidegger fez sobre a filosofia cristã (Agostinho e Duns Scot).
Em tempo2: Comparemos essas filosofias — em que paradoxalmente só o absurdo pode ter algum sentido — ao Cristianismo e, por conseguinte, a todas as filosofias verdadeiramente cristãs (católicas, portanto). Nestas tudo é prenhe de sentido e significados, tudo é harmonia, tudo é coerência, tudo tem um esteio firme: metafísica, gnosiologia, ética, política, antropologia filosófica, economia, etc.

Bem sabemos que a Cruz tudo atrai para si e a tudo ilumina. E ilumina gloriosamente — inclusive a filosofia.

quinta-feira, 26 de março de 2009

"TV" Contra Impugnantes - novo vídeo

Sidney Silveira
Postamos em nossa "TV" no Youtube a primeira parte de mais um vídeo: a entrevista concedida pelo Nougué ao Prof. Marcos Cotrim, da Universidade de Anápolis (GO), cujo tema foi a Filosofia da Música — tendo a Bach como parâmetro. Por limitações de espaço de postagem no Youtube, essa primeira parte tem (apenas) cerca de dez minutos, mas, aos poucos, disponibilizaremos a entrevista por inteiro. Além, é claro, de outros vídeos. Devo dizer que subscrevo, em todas as suas linhas gerais, o que aí está dito. Aproveitem!

terça-feira, 24 de março de 2009

Predestinação à salvação (III)

Sidney Silveira
Noutro mini-artigo
desta série — iniciada a pedido de uma amiga portuguesa de Braga —, a predestinação à salvação ficou muito bem enquadrada no plano da Providência Divina, como um dos modos desta. Mas é importante frisar que se trata do modo mais elevado da Providência, pois na predestinação se realizam os dois atos supremos da vontade divina: a justiça e a misericórdia. Assim, se alguns se perdem é porque Deus quis manifestar um bem maior (a Sua justiça), e se alguns se salvam é porque Deus quis manifestar outro bem maior (a Sua misericórdia). Como diz Garrigou-Lagrange no estupendo La Synthèse Thomiste, Deus quer, como fim, manifestar a Sua bondade — e julga e escolhe os meios adequados a esse fim superior. E isto se dá ao modo de imperium, ou seja, pressupõe dois atos eficazes livres e imperiosos da vontade divina: a intenção e a eleição. De acordo com Santo Tomás, a predestinação — modo mais elevado da Providência Divina — consiste formalmente nesse imperium em dois atos (leia-se, entre outros, Suma Teológica, I, q. 22, 1, ad. 1). A propósito, o Aquinate observa reiteradas vezes em sua obra que Deus, desde a eternidade, escolhe, por dileção, quem será salvo. E como a Sua vontade se cumpre infalivelmente** — e Ele tem a presciência dos contingentia futura —, também conhece o Criador o exato número dos inscritos no Livro da Vida, assim como dos réprobos que, neste mundo, morreram e morrerão na chamada impenitência final.

Algo que os teólogos modernistas não suportam, pois a visão de mundo liberal já os impregnou com o seu bafio nauseante, é isto: não há, em sentido estrito (simpliciter), méritos humanos em ordem à salvação. Ou, noutras palavras: a salvação é anterior aos méritos humanos, não obstante Deus queira a nossa colaboração com a Graça — mas não a quer, diga-se, como uma espécie de precondição ontológica necessária prévia, pois o mais não depende do menos para realizar os seus atos próprios. Ademais, se assim fosse, só os que foram justos e corretos nesta vida se salvariam (e, como já se disse no blog, o Bom Ladrão seria o primeiro a estar fora desse plano salvífico). Em resumo, tudo o que há no homem orientado para a salvação já é efeito da predestinação (incluída aí a disposição para a humana colaboração com a Graça).

Não obstante isto, de acordo com Santo Tomás, as orações dos homens santos e as boas obras podem ajudar no cumprimento da predestinação. Diz o Aquinate: “Deve-se dizer que, no tocante à predestinação, precisamos ter dois aspectos presentes: a predestinação mesma e os seus efeitos. Com respeito ao primeiro aspecto, a predestinação de nenhum modo pode ser ajudada pelas orações dos santos, pois, pelas orações não se consegue que alguém seja predestinado por Deus. Com relação ao segundo modo, deve-se dizer que a Providência é ajudada pelas orações dos santos e pelas boas obras, porque a Providência — da qual a predestinação é parte — não anula as causas segundas, senão que provê seus efeitos de tal forma que inclusive as causas segundas entram em Sua Providência”. (cfme. Suma Teológica, I, q. 23, a. 8, resp.)

Em síntese: na perspectiva do predestinante (Deus), não há méritos humanos em ordem à salvação; na perspectiva dos predestinados (nós, homens), há méritos, sim, mas apenas ao modo de causas instrumentais segundas já inseridas na causa primeira: a eleição divina que subministra, infalivelmente, todos os meios da Graça eficaz.

** Ao escrever que a vontade de Deus se cumpre infalivelmente, nunca é demais relembrar a distinção entre Graça suficiente (que depende da vontade divina antecedente ou condicional) e Graça eficaz (que depende da vontade conseqüente, absoluta e não-condicionada). A primeira é
possibilitante e a segunda, necessitante. Sem a compreensão desses dois modos da Graça e de seus correspondentes na vontade divina, não se pode nem sequer chegar a este problema teológico. De toda forma, também cumpre dizer que se trata de um mistério — em si mesmo — impenetrável e irresolvível nesta vida. Dele poderemos, no máximo, ter uma aproximação assintótica e imperfeita. Toda vez, na história da Igreja, que alguém tentou ir além do que a razão pode efetivamente alcançar, caiu em heresia.
(continua)

segunda-feira, 23 de março de 2009

Intentio cordis

Carlos Nougué
Escreve São Bento no Capítulo 52 (“Do oratório do mosteiro”) de sua Regra: Sed et si aliter vult sibi forte secretius orare, simpliciter intret et oret, non in clamosa voce, sed in lacrimis et intentione cordis (“Mas, se porventura também outro [monge] quiser rezar em silêncio, simplesmente entre e reze, não com voz clamorosa, mas com lágrimas e intentio cordis”). Propositadamente deixei esta última expressão sem traduzir, porque, embora seja comum traduzi-la por “pureza do coração”, e embora efetivamente esta tradução não seja de todo ruim, o fato é que a expressão não tem equivalente preciso em outras línguas, dada sobretudo a dificuldade de encontrar neste contexto versão perfeita para intentio. Vejamos brevemente por quê.

Dentre os muitos significados do termo intentio, cinjamo-nos aqui aos que mais de perto têm que ver com a passagem da Regra de São Bento e o assunto deste artigo:

1) ação de esticar, tensão;
2) aplicação, atenção, dedicação, esforço (intentio cogitationum, esforço ou tensão do espírito; intentio operis, dedicação ao trabalho; Sêneca: si mihi accomodaveris subtilitatem et intentionem tuam, se teu espírito penetrante me prestar atenção);
3) tendência a um fim ou desígnio (Plínio: Hæc intentio tua, ut..., Estes [teus esforços] tendem a...);
4) intensidade, grau (Sêneca: Summi dolori intentio, o grau sumo [ou o paroxismo] da dor);
(Os outros significados são sempre técnicos: ou jurídico, ou lógico [em Quintiliano significa “a premissa maior do silogismo”], ou médico.)

Pois bem, a meu ver, em intentio cordis o termo amalgama todos os significados precedentes, incluso o de pureza. Com efeito, esclarece Cassiano (Coll. 9, 6, apud A Regra de São Bento, trad. e notas D. João Evangelista Enout, O.S.B., 3ª. ed., Rio de Janeiro, Edições Lumen Christi, 2008, pp. 185): “Quando a mente estiver fundada em tal tranqüilidade e libertada dos liames de todas as paixões carnais e aderir de forma tenacíssima ao Sumo Bem, aí está a ‘intentio cordis’. Por meio dessa pureza, de certo modo, é absorvido o sentido da mente e reformado de sua situação terrena à semelhança espiritual e angélica; o que quer que receba em si, no ocupar-se ou no fazer algo estará realizando puríssima e sinceríssima oração. É assim cumprida a palavra do Apóstolo: ‘sine intermissione orate’, ‘orai sem cessar’ (I Tess., V, 17)”.

Ora, ninguém está mais aderido ao Sumo Bem que os bem-aventurados (anjos ou homens) ao contemplar a Deus face a face. Ao contrário do que dizia o nefasto Duns Scot, e como dizia Santo Tomás de Aquino, a vontade daquele que vê a essência de Deus já não pode pecar nem sequer venialmente: está submersa na perfeita beatitude ou felicidade que é o seu Fim Último, graças ao qual se tornou deiforme. Está como que em seu elemento: “respira-o”.

Então, no estado de contemplação de Deus face a face, já não será necessária a Fé. Mas para nós, os que ainda peregrinamos nesta terra de exílio, a Fé não só é necessária para o atingimento daquela perfeita beatitude, mas é essa mesma perfeita beatitude já incoada, já iniciada na vida atual. Por isso, pode-se dizer, quando maior for a Fé, mais incoada estará na vida atual a perfeita beatitude, e portanto mais a mente e o coração estarão fundados em grandíssima tranqüilidade, e mais estarão libertados dos liames de todas as paixões carnais, e mais tenazmente estarão aderidos ao Sumo Bem. Logo, mais capazes serão essa mente e esse coração feridos pelo pecado original, mas efetivamente purificados e limpos pela Graça, de prestar a glória devida a Deus.

Intentio cordis é, pois, essa pureza de uma mente e um coração aplicados, tendentes e aderidos em alto grau a Deus e grandissimamente libertos das impurezas da soberba, do amor-próprio e das paixões carnais, porque “mais precioso que o mais fino ouro é o meu fruto, meu produto tem mais valor que a mais fina prata” (Prov. VIII, 19). E não é senão com essa intentio cordis que podemos cumprir o mandado do Apóstolo de orar sem cessar, porque com essa intentio cordis oraremos purissimamente no que quer que estejamos fazendo: rezando no oratório beneditino, dando aula, arando o campo, entalhando a madeira, lavando a louça, comendo, cantando ou corrigindo amorosamente o filho querido (“Bate no teu filho com a vara e livrarás a sua alma da morte”, Prov., XXIII, 14). E orar assim incessantemente, com intentio cordis, em qualquer de nossas atividades, faz parte propriamente do santificar-se. Mas que distância entre esta afirmação e a de que nos santificamos fazendo bem (quase) qualquer ofício do mundo ou a de que agrada a Deus o fazer naturalmente bem, por exemplo, uma obra de arte!

A primeira, uma variante muitíssimo difundida do humanismo e do liberalismo “católicos”,* incorre em flagrante desvio da sã doutrina. Com efeito, se de santificação se trata, será decorrente da Graça e das virtudes teologais infusas (Fé, Esperança e Caridade), ou não será. Não se pode pensar em santificação sem o motor primeiro do sobrenatural, porque a santificação é já um produto sobrenatural e se ordena ao Sobrenatural. Pretender que nos santificamos fazendo bem (quase) qualquer ofício do mundo é afirmar, eo ipso, que o natural é capaz por si do sobrenatural. É incorrer, propriamente, em uma espécie de heresia pelagiana com odor de calvinismo. Naturalmente, os modernos defensores desse modo de pensar perfeitamente anticatólico não dizem que nos santificamos fazendo bem qualquer ofício do mundo, mas quase qualquer ofício, porque senão seriam obrigados a reconhecer que, por exemplo, o mais antigo ofício do mundo é motor de santificação. Não, seu erro não reside aí. Reside precisamente em crer que gerir bem um banco, digitar bem o que dita o patrão ou varrer bem uma casa é por si capaz de santificar, independentemente de se ter ou não a referida intentio cordis. Trata-se de uma espécie de sobrenaturalização do fazer natural, tão larga, que é capaz de incluir na subida da escada de Jacó até a não católicos e pecadores mortais. Mas é óbvio que se trata de uma falsidade, porque o que santifica é ser movido pela Graça a ter uma intentio cordis tal, que se seja capaz até de deixar de fazer os ofícios do mundo para servir a Deus, ou de renunciar até aos mais lícitos prazeres do mundo para viver para Deus, ou de dar a própria vida para tornar-se mártir de Deus. “E eis que o anjo do Senhor gritou do céu, dizendo: Abraão, Abraão. E ele respondeu: Aqui estou. E (o anjo) disse-lhe: Não estendas a tua mão sobre o menino, e não lhe faças mal algum; agora conheci que temes a Deus, e não perdoaste a teu filho único por amor de mim. Abraão levantou os olhos, e viu atrás de si um carneiro preso pelos chifres entre os espinhos, e, pegando nele, o ofereceu em holocausto em lugar de seu filho. E chamou àquele lugar o Senhor Providência” (Gên., XXII, 11-14). Não, Abraão não se santificou por pastorear bem os seus rebanhos, mas por oferecer ao Senhor não só o seu pastorear, mas toda a sua vida, a ponto de por amor e obediência a Ele ser capaz de sacrificar o próprio filho amado. E foi Santo entre os santos o Descendente de Abraão, de Isac, de Jacó e de Judá não por ter sido bom carpinteiro, mas por ter morrido de morte na Cruz como vítima propiciatória e satisfatória da glória ofendida do Pai, e em obediência absoluta e perfeita a Ele. Isto é ter intentio cordis. Naturalmente, também é ter intentio cordis oferecermos o nosso trabalho a Deus, o que implica tentar fazê-lo bem; mas, também naturalmente, não deixaremos de ter intentio cordis se, conquanto oferecendo perfeitamente a Deus até o mais estafante dos trabalhos e tentando fazê-lo bem, não pudermos por qualquer razão fazê-lo bem. O inferno só não está cheio, podemos parafrasear a Chesterton, de “malfazedores”. Ademais − e isto é tão fundamental que merece tratamento à parte –, nem todos os ofícios considerados honestos pelo mundo o são aos olhos de Deus. Será bom aos olhos de Deus gerir bem um banco se por tal gestão muitos perdem casas e bens em razão de hipotecas impagáveis? Será bom aos olhos de Deus ser contador de uma fábrica de quaisquer coisas indecorosas? Será bom aos olhos de Deus um médico praticar um aborto legal? Veja-se que não se fala aqui de algo impossível; obviamente, os católicos que vivem no mundo de hoje, tão universalmente apóstata e tão universalmente abjeto, só muito raramente têm condições perfeitas de escapar aos seus tentáculos. Como ter, então, neste mundo a referida e requerida intentio cordis? Antes de tudo, tentando até o último de nossos dias nos livrar, da melhor forma possível, de tais tentáculos, tendo sempre na mente e no coração que devemos vigiar sem interrupção, porque nossos adversários – o demônio, a carne e o mundo − andam ao nosso redor, como um leão que ruge, procurando a quem devorar (cf. I Ped., V, 8). Depois, enquanto ou se não conseguirmos absolutamente livrar-nos deles, pedindo permanente perdão a Deus pelo que somos obrigados a fazer, como aquele violinista católico que, na Alemanha do século XIX, tocava na orquestra de costas para o público a fim de não ser tomado pela vaidade tão própria dos artistas daqueles tempos românticos, demasiado românticos... Mas, por fim, como no caso do médico com respeito a um aborto legal e como em tantos e tantos outros casos, renunciando se preciso for, em nome de Deus, ao nosso próprio ganha-pão e ofício, e entregando-nos totalmente nas mãos d’Ele, e sujeitando-nos ao suave jugo de Cristo com a certeza de que são bem-aventurados os que sofrem perseguição por amor da justiça − justiça de Deus −, porque deles é o reino dos céus (cf. Mat., V, 10).

Ademais, como diz Cassiano e pressupunha São Bento em sua Regra, a intentio cordis implica a aceitação amorosa “do que quer que se receba em si”; implica o amor à cruz. Não disse Cristo que, “se algum quiser vir empós de mim, negue-se a si mesmo, e tome a sua cruz, e siga-me” (Mat., XVI, 24), e que “Eu sou o caminho, a verdade e a vida, e ninguém vai ao Pai senão por Mim” (Jo., XIV, 6)?

Há porém algo mais, e que esquecem tantos os defensores da tese da santificação pelo bem fazer os ofícios do mundo quanto os defensores do ser do agrado de Deus o bem fazer naturalmente, por exemplo, uma obra de arte:** pela intentio cordis, “é absorvido o sentido da mente e reformado de sua situação terrena à semelhança espiritual e angélica” (Cassiano, ibid.); ou seja, o sentido da mente de quem tem a intentio cordis está ordenado ao Fim Último, a Deus, à semelhança dos anjos glorificados e dos homens bem-aventurados, estes hoje como almas separadas do corpo e amanhã como unidades restauradas de alma e corpo glorioso. A intentio cordis pressupõe uma reforma do homem antigo, um renascer em Cristo, conforme ao qual todos os fins terrenos se ordenem perfeitamente, como meios, ao Fim Último, assunto sobre o qual já discorremos bem mais extensamente em “Sob o Cristo Senhor, o verdadeiro rei”. Pressupõe, portanto, que o humano natural se conforme ao sobrenatural da Graça, e que devemos, como dizia São Paulo, possuir as coisas deste mundo como se não as possuíssemos, e desfrutá-las como se não as desfrutássemos, e, como podemos conseqüentemente concluir, fazê-las sempre absolutamente em ordem ao Fim Último. O subordinado ou ordenado deve conformar-se ao subordinante ou aquilo a que se ordena. Agrada a Deus o bem cozinhar um prato demasiado requintado? Para sabê-lo, basta ler as espécies de gula que enumera São Gregório Magno no livro XXX, C. 18, n. 60 (PL 76, 556-557, apud Santo Tomás de Aquino, De Malo, q. 14, a. 3), de suas Morales: “præpopere laute nimis ardenter studiose”, ou seja, “fora de tempo, com ostentação, com excesso, com voracidade, com excessivo esmero”. Agrada a Deus o esculpir uma estátua de perfeito nu sensual? Agrada a Deus o compor uma complexa e musicalmente perfeita sinfonia que exacerbe as paixões do ouvinte? Agrada a Deus o descrever perfeitamente numa peça teatral quão baixo pode descer o homem em sua vileza sem apresentar o contraponto da Esperança cristã? Agrada a Deus escrever os mais perfeitos versos em honra a Satã? Como Lhe poderiam agradar se tal estátua, tal sinfonia, tal peça teatral e tais versos, por perfeitos que sejam, tendem a levar o próximo a pecar de algum modo?

Como diz Santo Tomás na Suma Teológica (I, q. 1, a. 6, corpus), “entre as ciências práticas, a mais excelente é a que está ordenada a um fim mais alto, como acontece com a política [ou arte civil] com relação à arte militar: pois o bem do exército está ordenado ao bem da cidade [e assim como acontece com a política com relação à arte musical, como o demonstram Platão na República e o Filósofo na Política]. Ora, o fim desta doutrina [a teologia], enquanto prática, é a bem-aventurança eterna, à qual se ordenam todos os outros fins das ciências práticas [ou seja, da política, da arte militar, da arte musical, da arte arquitetônica, etc.]. Portanto, é claro que por qualquer ângulo a ciência sagrada é a mais excelente”. Pergunta-se: o fim da ciência musical de um Beethoven, o fim da ciência teatral de um Shakespeare, o fim da ciência arquitetônica de um Niemayer se ordenam à bem-aventurança eterna? Mas então qualquer obra de arte que não seja estritamente católica não tem nenhuma importância e é nefasta para a vida do católico? Não, porque algumas formas de arte greco-romanas eram, digamos, “batizáveis” porque Deus mesmo, mediante sua Providência, preparara a cultura greco-romana como carne apta para receber o espírito do cristianismo; ou também porque algumas obras de arte, como muitos quadros de Rembrandt, são como que continuidades culturais ou últimos suspiros católicos em ambientes já não católicos. Mas sem dúvida alguma a melhor arte é a resultante dos que têm não só grande talento, mas verdadeira intentio cordis, ou dos que, também dotados de grande talento, ao menos seguem de algum modo os cânones daqueles: a arte de São Gregório Magno, a arte do rei Afonso X, a arte de Fra Angelico, a arte de Gil Vicente, a arte de Palestrina, a arte de Victoria, grande parte da arte de Lope de Vega, boa parte da arte de Bach, parte da arte de César Franck, a arte de Chesterton, etc.

Sim, porque para tudo numa vida ordenada a Deus com intentio cordis vale o que diz São Tiago (I, 22): “Sede realizadores da palavra e não apenas ouvintes”. E ter intentio cordis, fazer tudo com intentio cordis, é adquirir como Hieroteu a sabedoria divina não apenas estudando-a, mas padecendo-a até no menor ato da vida (cf. Pseudo-Dionísio, De Divinis Nominibus, apud Santo Tomás, Suma Teológica, I, q. 1, a. 6, ad 3: “Hierotheus doctus est non solum discens, sed et patiens divina”).

* Só se pode entender a existência de um liberalismo ou de um humanismo católicos, como diz o Padre Álvaro Calderón em La religión del hombre, ao modo degenerativo de um câncer.
** Acerca dos que crêem ser do agrado de Deus o bem fazer naturalmente, por exemplo, uma obra de arte − os quais não necessariamente são liberais, às vezes muito pelo contrário, mas com esta tese caminham perigosamente à beira do precipício do humanismo −, já se falou mais desenvolvidamente em “Maritainismo resistente”)