sábado, 21 de setembro de 2024

Crise de habitação: os primeiros sinais de agravamento?

O INE divulgou ontem os dados mais recentes do Índice de Preços da Habitação (IPH) relativos ao segundo trimestre de 2024 (abril a junho). Em termos homólogos, face ao segundo trimestre de 2023, o preço das casas aumentou 7,8%. Face ao trimestre anterior, a subida foi de 3,9%.

Vale a pena assinalar, desde logo, que estamos perante o maior aumento trimestral desde que há dados disponíveis (2009). Mas também, não menos relevante, que esta subida inverte a tendência de redução do valor de aumento dos preços das casas, que vinha a registar-se desde o segundo trimestre de 2023. Ou seja, ao longo do último ano.


Sendo vários os fatores que influem na variação dos preços, podemos muito bem estar, contudo, a assistir aos primeiros efeitos do retrocesso, em matéria de política de habitação, pelo atual governo. Tanto ao nível do reforço das lógicas de subsidiação, sem ponderar o seu impacto na subida dos preços, como ao nível do recuo na regulação de procuras (fim das restrições ao Alojamento Local e anúncio de regresso dos Vistos Gold, por exemplo).

Ou seja, medidas que, no seu conjunto, traduzem uma linha orientada para «dinamizar o mercado», criando, por si só, expetativas de incremento das transações e de preços. Nada que surpreenda, na verdade, quando foi a própria ministra da Juventude e Modernização, Margarida Balseiro Lopes, por exemplo, a admitir que os apoios aos jovens (com capacidade para comprar casa), podiam fazer subir ainda mais os preços.

Mesa comum


Na melhor tradição francófona de cruzamento entre a filosofia social, a economia política e a histórias das ideias, o filósofo Pierre Crétois vai estar entre nós na próxima semana. Terei o privilégio de participar com ele e com o historiador João Luís Lisboa numa mesa redonda. Aparecei.

Partindo da sua obra, que não está traduzida entre nós, destacarei que aquilo a que chamamos propriedade privada não passa de feixes de direitos e obrigações passíveis de múltiplas e contestadas alocações, obviamente politicamente determinadas, regulando relações sociais com diferentes padrões distributivos. 

Daqui, passarei para a denúncia do regime proprietarista em que vivemos em Portugal e na UE, fruto da destruição da propriedade pública e logo da erosão da autoridade democrática, particularmente intensa nesta periferia. Foi o produto de décadas de iniciativas liberais que existiram realmente, com custos sociais crescentes, como se vê. Haverá um breve momento soberanista.

sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Haja memória


Reavivar da memória, por Volskvargas na semana passada, no início de mais um ano letivo, a partir de um debate entre Nuno Crato e João Costa. Não deixem de ver, do princípio ao fim (são apenas 2 minutos). Ou o ex-ministro da Educação da PAF tem um problema, não clínico, de dupla personalidade, ou é detentor de um topete sem limites.

Quando a questão da falta de professores é finalmente consensual na sociedade portuguesa, o responsável, com o seu governo, pela saída de cerca de 30 mil docentes da Escola Pública, entre 2011 e 2015 - e que defendia haver professores a mais - vem agora dizer que o problema da falta de professores «é uma falta de reconhecimento do problema da falta de professores». Isto não se inventa.

Crato chega mesmo a afirmar que, «na realidade, nós sabemos há muito tempo, que há uma falta de professores e que havia uma falta de professores»... Muito tempo? Quanto tempo passou desde que, em 2012, aludindo ao «viver acima das possibilidades», e invocando argumentos demográficos (que operam no tempo longo), o então ministro da Educação e Ciência disse haver «professores a mais», sentenciando que pelo menos em duas legislaturas se iria «continuar a assistir a necessidades muito limitadas de contratação»?

Com que noção se fica da seriedade de Nuno Crato, que em nenhum momento reconhece ter errado, preferindo dar um salto em frente, a ver se ninguém percebe o flic-flac? Bom, pelos vistos a suficiente para presidir ao Conselho Geral do Observador e à Iniciativa Educação, da Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS), onde é apresentado como «prolífico divulgador científico e interventor em educação».

No plural


Para quem fala tanto dos usos e abusos do passado, o historiador Rui Bebiano, agora militante do Livre, revela ter uma visão particularmente ahistórica e estreita do nacionalismo. É como se este se declinasse no singular. Isto permite-lhe então inventar um “demónio nacionalista que tantos de nós transportamos na alma”, formulação de resto representativa do seu modo habitual de pensar, com abundantes generalizações moralistas. 

Na realidade, sabemos, da melhor historiografia, sociologia histórica e teoria política, que nacionalismos há muitos, sendo estes uma “poderosa bateria”, que serve para “alimentar os mais variados projetos políticos”, como disse uma teórica liberal nada dada a diabolizações ideológicas equivocadas, useiras e vezeiras em alguns intelectuais daquele agrupamento político, na prática à direita do atual PS. 

Repito as vezes que forem necessárias, porque se trata de uma questão crucial nesta semicolónia, que bem precisa de um nacionalismo progressista, de um projeto de nação corajoso, como se diz no Brasil. Nacionalismos houve e há muitos, então – liberais e antiliberais, progressistas e reacionários, revolucionários e conservadores, das esquerdas e das direitas, de cima e de baixo, fascistas e antifascistas, imperialistas e anti-imperialistas, racistas e antirracistas. 

O meu nacionalismo é o dos camaradas galegos ou palestinianos, o de Cabral ou o de Cunhal, o de todos os que gritaram de forma emancipadora “pátria ou morte, venceremos” –, o nacionalismo internacionalista de que fala detalhadamente um historiador que não perde o fio materialista à meada chamado Vijay Prashad, na sua história do Terceiro Mundo. 

Não, não há contradição necessária entre nacionalismo e internacionalismo, pode haver a mais produtiva complementaridade: a autodeterminação dos povos é passível de reconhecimento recíproco universal, promovendo as formas mais genuínas de cooperação. 

Não me esqueço de uma aposta política ululante, arduamente aprendida no breve século XX e que, se dependesse de historiadores euroliberais, seria esquecida: nenhuma palavra potente, muito menos a que está associada à melhor bateria política, deve ser deixada aos fascistas. 

E, antes que me esqueça, Olivença é espanhola, digam os tratados o que disserem. A história conta, o “plebiscito diário” também.

quinta-feira, 19 de setembro de 2024

OE 2025: Cavaco não tem razão

Recupero um texto importante de Cavaco Silva, já com uma quinzena. Este texto.

Do conjunto de afirmações que mereceriam considerações, este post cinge-se à seguinte: “Aumentar a despesa pública sem aumentar as receitas do Estado ou a dívida pública é uma impossibilidade”.

A afirmação acima, sendo apenas parcialmente verdadeira, ofusca a essência do que está, de facto, em causa e é, na sua universalização implícita, essencialmente, falsa.

O que Cavaco afirma só é verdade em termos absolutos e é falso em termos relativos, os termos que verdadeiramente são relevantes para as finanças públicas.

Repare-se que, para um rendimento anual de 10 mil euros, uma dívida de 10 mil euros, significa 100% de endividamento. Repare-se também que para um rendimento de 100 mil euros, a mesma dívida de 10 mil representa apenas 10% de endividamento. Como se percebe, está muito longe de ser igual dever 10%, ou 100%, do rendimento. Pelo que também é fácil perceber que uma dívida medida pelo seu valor absoluto, pouco, ou nada, nos diz da sua relevância. E é aqui que reside o truque falacioso de Cavaco.

Se o objetivo de finanças públicas for a sustentabilidade da dívida pública, entendida esta como dívida que não entra numa dinâmica de crescimento infinito - critério de sustentabilidade do Fundo de Monetário Internacional (FMI) – se assim for, interessa, não apenas o montante adicional de dívida (ou seja, o défice) mas, muito mais relevante, a relação entre este défice primário (sem juros incluídos) e o montante adicional de rendimento da economia (PIB) líquido de juros.

Dito de outro modo, se o crescimento do rendimento, expurgado dos juros pagos pelo endividamento previamente acumulado, for superior ao valor do défice primário, a dívida, em termos relativos, cai.

Como se explica neste estudo (página 8) do FMI (minha tradução), “podem decompor-se as variações dos rácios da dívida em relação ao PIB nas componentes de crescimento, de taxa de juro e de défice, utilizando a seguinte identidade:


em que dt é o rácio da dívida em relação ao PIB, gt é a taxa de crescimento do PIB nominal, it é a taxa de juro nominal e o défice é o défice primário (...)”

Sabendo isto, acima, atentemos num exemplo concreto ilustrado com números:


Neste exemplo, com taxa de juro de 2% e taxa de crescimento do PIB de 7%, nenhum défice inferior a 4,7% resultaria em crescimento da dívida. Nesta simulação, ao contrário, a dívida recua 1,7 pontos percentuais (p.p.), cai para 98,3%, ou seja, recua a diferença entre o efeito bola de neve (a soma do efeito PIB com o efeito juros) e o défice primário.

De onde se pode concluir que, ao contrário do que afirma Cavaco, é possível aumentar a despesa, não aumentar as receitas e, ainda assim, a dívida recuar. Assim sendo, recapitulando, a sua afirmação, aquela com que começamos este texto, é falsa.

Repare-se agora, com mais detalhe e alcance temporal na evolução histórica do efeito bola de neve na dívida pública.


O que significa aquele pico de 10,2 p.p. em 2012, o segundo maior da série?

Significa que em resultado de uma política orçamental como aquela que defende Cavaco Silva (défice zero ou superávite), fazendo cair o PIB numa economia fustigada pela especulação com taxas de juro permitida pelo BCE (política inquestionada por Cavaco e pelo extremo centro em geral), independentemente do défice daquele ano, só em razão desta dinâmica malsã e politicamente induzida, a dívida pública aumentou 10,2 p.p..

Para se ter uma ideia apropriada do desastre que representou aquela política que Cavaco volta agora a defender, tenha-se em consideração que, em toda a série disponível, só uma calamidade como aquela com a gravidade da pandemia de 2020, que obrigou a encerrar parcialmente a economia e gerou um brutal efeito bola de neve no valor de 10,9 p.p., produziu efeitos tão nocivos para a sustentabilidade da dívida pública que possam ser comparáveis aos do descalabro de 2012 engendrado pela troika e pela direita. É obra.

Não esqueçamos que, em 2023, a despesa pública total, em percentagem do PIB, em Portugal, se cifrou em apenas 42,3% e na Zona Euro em 50%, uma diferença de 7,7 p.p..

Recordemos também que, no que a despesa pública com investimento diz respeito, desde 2012 que esta é menor em Portugal, tendo esta divergência atingido o seu pico em 2016, ano em que o investimento público em Portugal foi apenas cerca de metade do realizado na zona euro.

Não. Cavaco está errado. Não era e continua a não ser assim que se levanta um Estado. Por mais livros que tenha publicado no estrangeiro. Por mais que alguns economistas, mergulhados no simulacro de discussão orçamental a que temos direito, lhe dêem razão.

Toda a solidariedade internacionalista


Podem oprimir-vos, podem aprisionar-vos, mas nunca quebrarão o vosso espírito. Gaza, Jenin, Tulkarm, Nablus, nunca caminhareis sozinhas.

A melhor solidariedade internacionalista europeia com a martirizada nação palestiniana vem dali, de onde há uma cultura nacionalista, plebeia e progressista, como na Irlanda ou na Galiza ou no País Basco. Nunca deixar de falar, nunca deixar de lutar. 

Em linha com o melhor da sua história anticolonialista, soberanista e antirracista, a Assembleia-Geral da ONU aprovou a imposição de sanções contra o Estado terrorista de Israel, como tinha feito com a África do Sul do Apartheid. O imperialismo opôs-se, como sempre. 

Saiba a tão silenciosa universidade portuguesa, por exemplo, seguir o gesto da ONU. Esperamos ter novidades para breve sobre quebras de um silêncio tão ruidoso como o genocídio perpetrado por Israel, com apoio de EUA e de UE. É que há cumplicidades insustentáveis, insuportáveis.

quarta-feira, 18 de setembro de 2024

De que se queixa, afinal, a Iniciativa Liberal?

Nas jornadas parlamentares da IL, a deputada Mariana Leitão acusou a AD de ter prometido mudanças, mas estar apenas a proceder a «ténues alterações», afirmando que a IL é o «único partido (...) com uma proposta concreta para a saúde». Para que não houvesse dúvidas, concretizou: «uma proposta que pretende que se abandonem os preconceitos ideológicos para que se utilizem todos os setores, permitindo que os utentes tenham cuidados de saúde em tempo útil».

Não se justifica, contudo, o queixume da deputada da Iniciativa Liberal. A menos que lhe tenham escapado as declarações proferidas no dia anterior pelo Primeiro-Ministro, Luís Montenegro, considerando que «a saúde não se gere com preconceitos ideológicos». Ou as declarações de Ana Paula Martins, ministra da Saúde, no próprio dia, a pedir um «amplo consenso nacional» para levar a cabo a «reforma estrutural» do SNS, aproveitando «a capacidade instalada de todos os setores» (ou seja, financiar com recursos públicos o setor privado e os seus lucros).


Mas há, claro, uma terceira hipótese. A de a deputada da IL, Mariana Leitão, pretender apenas fazer a síntese do que disse o Primeiro-Ministro e a ministra da Saúde, revelando assim a convergência e plena sintonia programática que existe entre a Iniciativa Liberal, o PSD e o CDS-PP (e o Chega, já agora). Mesmo que sob a aparência de uma falsa indignação, para militante ver, no contexto de umas Jornadas Parlamentares.

Manifestação justa, vida justa


No dia 21 de Setembro, o movimento Vida Justa junta-se à Grande Marcha Cabral de luta e celebração do centenário de Amílcar Cabral, pelas 15h00, com o percurso do Marquês de Pombal até ao Rossio, em Lisboa. A iniciativa carrega o lema cabralista de «unidade e luta contra o fascismo, a xenofobia e o neocolonialismo» ao convidar «todas as forças vivas», «comprometidas com as causas justas» a marchar pelo fim das «fomes, as guerras, a miséria e a injustiça». 

Esta marcha exige a responsabilidade de não negar as ideias de Amílcar Cabral, como o próprio defendia. Unidade não visa «unir todos em torno da mesma causa, por mais justa que ela seja, de realizar a unidade absoluta, de unir-se não importa com quem». 

Neste dia de luta e reflexão, reforçamos o convite a todas as pessoas, «forças vivas», «comprometidas com as causas justas», a juntar-se à Marxa Kabral pela justiça para «Cláudia Simões, Bruno Candé, Daniel Rodrigues, Danijoy Pontes, Giovani Rodrigues, Múmia Abu Jamal», pela dignidade humana.

Dado um ou outro comentário desonesto que circulou por aí, aproveito esta excelente convocatória da Vida Justa para reafirmar o seguinte: criticar a composição de um abaixo-assinado político-partidário, por algumas pessoas que inclui e pelas muitas que exclui, não é criticar uma manifestação antirracista, que de resto é totalmente autónoma em relação a tal iniciativa e que merece ser apoiada. 

E não é criticar a esmagadora maioria das pessoas que foram convidadas a assinar, como é evidente. É simplesmente criticar quem escolheu que certas e determinadas pessoas assinassem. Não vale tudo na unidade, como Cabral tão bem assinalou.

terça-feira, 17 de setembro de 2024

OE 2025: simulacro democrático

A 17 de Julho último, o Expresso noticiou que “por lei, o Governo tem de entregar todos os anos ao Parlamento os quadros com a despesa pública prevista para os próximos anos, fixando um valor para o ano seguinte que tem de ser replicado no Orçamento do Estado. A proposta de lei chegou, desta vez, sem os quadros. A Assembleia da República já o pediu ao Governo, mas ainda não foi entregue”. 

Cerca de dois meses depois, no fim da semana passada, o governo fez, finalmente, chegar aos partidos políticos o tal Quadro Plurianual da Despesa Pública que estava em falta. Este quadro. 


No entanto, apresentando contas não consolidadas, ou seja, não expurgadas do efeito de dupla contabilização de receitas e despesas, os números apresentados naquele quadro são de leitura impossível e, vítima incauta e preguiçosa desta impossibilidade, a imprensa noticia o absurdo ululante: “Governo prevê arrecadar 110% do PIB de 2023 em impostos no próximo ano”. 

Pedro Pratas já aqui tinha tratado este assunto de forma oportuna e cristalina enquanto, simultaneamente, denunciava com desassombro o desinformado e demagógico aproveitamento que a Iniciativa Liberal tentou fazer desta situação. 

Neste contexto, na sua última coluna de opinião no jornal Público, a 13 de setembro,  Susana Peralta, assinala oportunamente que “(...) o Parlamento devia aprovar em abril (digamos, de 2024) um teto de despesa que vincula o Governo no ano seguinte (digamos, 2025)”. 

No mesmo texto afirma-se também que “[a] cacofonia que inunda cada mês de setembro faz crer que o Orçamento nasce algures entre o primeiro e o último mergulho de agosto. Mas não devia ser assim. A Lei de Enquadramento Orçamental prevê que o Orçamento do Estado seja elaborado em duas etapas”, diz-nos a colunista logo a iniciar. 

A economista prossegue desta forma: “Assim, o processo orçamental começa em abril, quando o Governo apresenta à Assembleia da República a Lei das Grandes Opções, para discussão e votação, em conjunto com a atualização do Plano de Estabilidade. Um dos principais ingredientes desta lei é o Quadro Plurianual da Despesa Pública – QPDP para os amigos. O QPDP estabelece tetos de despesa para os cinco anos que se seguem, com a particularidade de o teto ser vinculativo para o primeiro destes anos.” 

“Já vimos este filme. Em 2021, a Lei das Grandes Opções não chegou a ser discutida e votada no Parlamento e acabámos sem Orçamento aprovado e em eleições”, diz-nos também Peralta. 

Neste último parágrafo, Peralta inclui uma ligação para outro texto seu, de 2021, onde reza assim: “O debate orçamental inicia-se em abril, quando o Governo submete ao Parlamento uma proposta de Lei das Grandes Opções. A LGO, tal como o OE, são da competência do Parlamento”.
 
Se leio apropriadamente o que Peralta afirma, do seu texto pode legitimamente inferir-se que este ano não está a acontecer nada de extraordinário e que este atraso e a desinformação que se lhe seguiu é apenas o desacerto habitual. 

É uma leitura que não acompanho. A meu ver, muito pelo contrário, pouco, ou nada, deste simulacro de debate é ordinário.

Repare-se que, como vimos acima, é da competência do Parlamento definir tetos de despesa e que esses tetos devem ser apresentados pelo governo ao parlamento até abril. 

Ora, com a reforma recente das regras de governação na União Europeia, o poder de decidir acerca do teto da despesa foi apropriado pela Comissão Europeia e esta instituição, à data da apresentação pelo governo do Quadro Plurianual da Despesa Pública ao parlamento, 6 de setembro último, ainda não tinha decidido quanto do nosso dinheiro podíamos usar, situação que volta a ser confirmada pelo governo a 8 de Setembro

Obviamente nada disto é habitual ou ordinário. Parte importante da soberania económica do país voltou a ser transferida para instituições não nacionais (o povo deu-se conta?) e, não sendo jurista, diria que a lei da Républica Portuguesa não está a ser cumprida. À falta de nova lei orçamental (será possível redigir alguma que respeite o imperativo constitucional da soberania nacional?), quem deve decidir o teto da despesa pública em Portugal continua a ser a Assembleia da República e esse teto deve ser apresentado ao parlamento em abril. Nenhuma das duas obrigações legais me parece estar a ser respeitada.  

Susana Peralta finaliza o artigo a que tenho estado a aludir afirmando que "(...) temos direito a um debate orçamental substantivo e escrutinável” e perguntando: “Onde está ele?”.

A sua questão leva-me a uma outra: como é possível ter um debate orçamental substantivo e escrutinável se estamos a discutir sem conhecer quanto do nosso dinheiro a Comissão Europeia nos autoriza a usar, ou seja, se estamos a discutir o orçamento sem conhecer o orçamento? 

O que já sabemos é que as ”[n]ovas regras orçamentais europeias retiram mais margem ao Governo do que as antigas”. E também sabemos que o país nunca saberá que pressupostos usou a Comissão para concluir acerca desta margem menor que atribui discricionariamente ao país. Recordemos que, em 2023, a despesa pública total, em percentagem do PIB, em Portugal, cifrou-se em 42,3% e na Zona Euro em 50%, uma diferença de 7,7 pontos percentuais. 

Como pode um debate orçamental substantivo passar ao lado destas questões?

Um problema

Álvaro Cunhal, Um problema de consciência, Diabo, 11 de março de 1939, p. 5. Opúsculo editado pelas Edições Avante!, com ilustrações de Ana Biscaia, impresso na tipografia Damasceno, em Coimbra, no ano de 2021.

O problema


Em resposta ao meu comentário, Pedro Adão e Silva afirma as suas certezas: “É comovente ver a forma como pessoas que nunca votaram no PS e não parece que algum dia tencionem votar têm tantas certezas sobre o que o PS devia ou não fazer. Aliás, é uma história com 50 anos.” 

Não tem grande relevância, mas já que menciona o assunto, aproveito para esclarecer: já votei no PS em eleições legislativas (era Ferro Rodrigues Secretário-Geral), em autárquicas (João Soares, em coligação) e em candidatos do PS nas presidenciais (Jorge Sampaio e Manuel Alegre). 

Apoio o PCP desde 2015 e já não conto mudar, mas o PS, tal como o BE, onde de resto militei, entre 2007 e 2014, interessam-me. Seja como for, será que um apoiante de um partido não pode avaliar outros partidos? Pedro Adão e Silva não o faz? 

Enfim, faltam argumentos e sobra uma linha em que o PS apoia o PSD sem mais, independentemente do OE, por causa do Chega, agigantando um partido em queda, dando-lhe a oportunidade de “polarizar”, como gosta de dizer. 

E não, não seria um tango: o PS ficaria a ver o PSD dançar o que bem entendesse, com a música que bem quisesse. Será que esta linha extremo-centrista se inspira na França do incensado plano inclinado Macron?

Adenda. Na foto está a primeira página do último livro de Bernie Sanders, em que este declara: é ok estar furioso com o capitalismo. Duvido que Kamala Harris o esteja. Com todas as divergências com este social-democrata, que opera num país mais recuado do que o nosso em termos de conquistas das classes trabalhadoras, reconheço que seria difícil ver um social-democrata português, exceção feita à ASD, com esta sua atitude crítica atualmente.

segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Inimaginável

Imagine viver num mundo onde pode ser preso ou suspenso por dizer não mate crianças, porque dizê-lo pode ofender os sentimentos dos assassinos.

Foi publicada uma lista de dezenas de milhares de mortos, com nome, género, idade e identificação. As 14 primeiras páginas são de bebés com menos de um ano. O mínimo que podemos fazer é continuar a falar sobre o genocídio na Palestina. O colonialismo sionista tem de ser denunciado e relações com Israel têm de ser cortadas. 

Se este país tivesse uma elite do poder que se desse ao respeito, já tinha reconhecido o Estado palestiniano e expulso o embaixador de Israel por interferência na vida nacional e apoio ao genocídio. Ao invés, tem uma elitita cheia de cumplicidades e de duplicidades, função de uma linha de cor e de uma linha de classe. Basta aliás comparar, uma disciplina essencial na avaliação política.

domingo, 15 de setembro de 2024

Cantigas de embalar


Assinalando o 45º aniversário do Serviço Nacional de Saúde, Luís Montenegro envereda pela habitual conversa da direita, destinada a criar uma cortina de fumo que disfarce os objetivos de sempre: privatizar o SNS e promover o mercado da doença. Na lógica de um sistema de saúde - e não de um serviço público - que integra e financia os privados, o Primeiro-Ministro diz que «a saúde não se gere com preconceitos ideológicos», como se a sua visão de negócio para o setor, contrária aos princípios da provisão pública, não fosse por demais ideológica.

Nada mudou, portanto, num partido que - ao lado do CDS - votou contra a criação do SNS em 1979, e que, vinte anos depois, substituiu a consagração, na Constituição, do direito «universal, geral e gratuito» à saúde, por um acesso «tendencialmente gratuito». E que, na proposta de revisão constitucional de 2021 pretendia, num quadro de garantia minimalista, que o acesso a cuidados não pudesse «ser recusado por falta de meios económicos». Ou seja, começando a abrir a porta ao pagamento pelo utilizador, nos restantes casos.

É este o mesmo PSD que agora - no governo com o CDS - tem em curso um plano dito de emergência, mas que é, na verdade, de transformação da saúde, com uma abertura sem precedentes ao setor privado e que desinveste no SNS e nos seus profissionais. Plano em que a AD se prepara, por exemplo, para financiar com dinheiros públicos centros de saúde de gestão privada, concedendo-lhes um grau de autonomia que nega às unidades do serviço público. «Preconceitos ideológicos»? Sem tudo aquilo a que Montenegro chama de preconceitos ideológicos, o SNS e as suas conquistas nunca teriam visto a luz do dia.

Incentivos sem equívocos


Pedro Adão e Silva continua sem escrever sobre o genocídio perpetrado por Israel, com apoio dos EUA e da UE. As preferências revelam-se na escolha e os valores também.

Em coerência, dedica-se agora à modalidade preferida de antigos ministros do PS que prosperam na enviesada comunicação social: tentar puxar o partido cada vez mais para a direita, desta vez deixando ao Chega a tarefa de ajudar neste puxão. Agiganta um partido em queda neste momento.

Sérgio Sousa Pinto mostra, aliás, que nem sequer é preciso ser antigo ministro, nem sequer é preciso ter feito alguma coisa de jeito na vida. Basta ser de direita no PS e mal-educado. Apoiar o genocídio, com drinks de fim de tarde na embaixada israelita e tudo, não desajuda, imagino.

Influenciado pelo institucionalismo da escolha racional,  o politólogo Adão e Silva, vários furos acima de Pinto, sabe que o fundamental são os “incentivos”, como gosta tanto de dizer. O uso generalizado desta palavra é aliás todo um programa ideológico.

Entretanto, Carmo Afonso faz mesmo falta.

sábado, 14 de setembro de 2024

Pensar, sentir as pedras, atravessar os rios


Daniel Oliveira assinalou que “o mais brilhante dos libertadores faria hoje 100 anos”. Sem acesso a um brilhantómetro, creio que Cabral foi um dos mais importantes “marxistas orientais”, tragicamente assassinado antes de ter desenvolvido decisivamente a hercúlea tarefa de construção do Estado nacional, rumo ao socialismo. 

Permitam-me um momento de cinismo, nem sou dado a esta atitude: num certo pós-pós-marxismo, nada faz mais por uma reputação do que uma morte tragicamente precoce – Rosa Luxemburgo, Antonio Gramsci, Amílcar Cabral... 

Pela minha parte, estes três pensadores-heróis, cada um à sua maneira, estão sempre na lista de leituras marxistas, ajudando a pensar. Mas confesso que tenho cada vez mais interesse pelos pensadores ainda mais malditos, os que tiveram mesmo que (re)construir um Estado nas mais duras condições, como as que os comunistas têm de enfrentar hoje em dia na Cuba sob bloqueio. 

Gosto mais do Lénine depois de 1917 do que do Lénine com ilusões, ainda que revolucionariamente produtivas, de O Estado e a Revolução. Aprecio, em particular, o Lénine da NEP, do capitalismo de Estado, do socialismo com mercados, do diagnóstico de uma doença infantil, o esquerdismo. Dei algumas voltas políticas, mas estive sempre com o Nikolai Ivánovitch Bukhárine que é dado a ver pelo seu biógrafo norte-americano.

Gosto de pensar com Deng Xiaoping, com os que tiveram de enfrentar escolhas trágicas, definindo novos critérios e forjando novas distinções, tomando, por exemplo, “o desenvolvimento como o duro teste”, sobrevivendo e florescendo em tempos impossíveis e deixando, com o seus erros e acertos espetaculares, ensinamentos “práticos” de altíssimo valor “teórico”.

sexta-feira, 13 de setembro de 2024

Alguém avise, por favor, o Dr. Marques Mendes...


... que foi induzido em erro, divulgando inadvertidamente números falsos, oriundos do atual Ministério da Educação. No seu espaço de comentário semanal, como já assinalado aqui, apresentou um gráfico em que era revisto, pela atual tutela, o número de alunos que iniciou o ano letivo anterior sem professor a uma disciplina (de cerca de 80 mil para uns exorbitantes 324 mil), estimando que no presente ano letivo esse valor caísse para 223 mil alunos, o que permitiria ao governo falar numa redução de 31% dos alunos sem aulas face a 2023.

Sucede que, na sequência da audição do ex-ministro João Costa, o Polígrafo debruçou-se sobre o assunto, constatando que a atual equipa governativa «deu voltas e voltas ao número» (os tais 324 mil que constam do «Plano +Aulas +Sucesso»), na tentativa de o justificar. Afinal, em vez de contabilizar os alunos sem aulas a uma disciplina no início do ano letivo, o valor representaria, segundo a tutela, a «soma de todos os alunos que, em algum momento do mês de setembro, se encontraram nesta condição». Consultando os registos da DGEstE, relativos a três momentos de aferição do problema, o Polígrafo concluiu que o ministério continuou a incluir nas contas alunos cuja situação já estava resolvida, contabilizando-os «três vezes» e empolando, assim, o resultado final, classificado como falso pelo Polígrafo.

Preparava-se pois o Governo, recorrendo a um exercício de contabilidade criativa (fica por explicar, aliás, como chegou à previsão de 223 mil alunos sem aulas a uma disciplina no presente ano letivo), para dizer que, graças ao seu plano, a questão da falta de professores tinha melhorado face ao ano letivo anterior, contrariando dados que dão nota de um agravamento da situação. Tudo a fazer lembrar, portanto, a idêntica fabricação de ilusões e criação de falsas expetativas na saúde, em que a respetiva ministra foi obrigada pela realidade a reconhecer, eufemisticamente, que «nem tudo correu bem».

Na mesma linha, faria bem Fernando Alexandre em reconhecer o erro, em vez de dizer, como hoje na visita a uma escola (cito de memória), que independentemente do valor em causa, a situação é gravíssima, continuando assim a insistir na ideia, também ela falsa, de que foi o primeiro governante a identificar o problema. Não foi.

Texto da luta


Para os movimentos de libertação nacional, cuja tarefa é fazer a revolução, modificando radicalmente, pelas vias mais adequadas, a situação económica, política, social e cultural dos seus povos, o pensamento e a acção de Lénine têm um interesse especial (...) Lénine deu uma lição muito útil aos movimentos de libertação, aos combatentes da liberdade. Tinha uma nítida consciência do valor da unidade como meio necessário para a luta, mas não como um fim em si. Para Lénine, não se trata de unir todos em torno da mesma causa, por mais justa que ela seja, de realizar a unidade absoluta, de unir-se não importa com quem. A unidade, como qualquer outra realidade, está sujeita às transformações quantitativas, positivas ou negativas. A questão é descobrir qual é o grau de unidade suficiente que pode permitir o desencadear e garantir o avanço vitorioso da luta. E, posteriormente, preservar essa unidade contra todos os factores de dissolução ou divisão, tanto internos como externos.

Excertos do sábio discurso de Amílcar Cabral, em 1970, no centenário de Lénine, na URSS. Acho que acompanha bem a divulgação do lançamento do livro das Edições Avante! que se realiza hoje em Coimbra, no âmbito das magníficas comemorações do centenário. Sim, há mesmo quem insista em levar Cabral a sério. E que grande contraste ético-político com certas e desmemoriadas assinaturas...

quinta-feira, 12 de setembro de 2024

OE 2025: Quanto do nosso dinheiro, afinal, podemos usar?

Em 2023, a despesa pública total, em percentagem do PIB, em Portugal, cifrou-se em 42,3% e na Zona Euro em 50%, uma diferença de 7,7 pontos percentuais. 

Em 2024, se as provisões disponíveis na Ameco se concretizarem, aquela diferença será ainda de 6,2 pontos percentuais. 

No período 1995-2024, nos últimos 29 anos, apenas em 3 anos, a despesa pública em % do PIB foi em Portugal mais elevada do que na zona euro. Em 2010 mais 0,9%, em 2011 mais 0,4% e em 2014, ano em que a direita governava, mais 2,1%. 

No que diz respeito a despesa pública com investimento, desde 2012 que esta é menor em Portugal, tendo esta divergência atingido o seu pico em 2016, ano em que o investimento público em Portugal foi apenas cerca de metade do realizado na zona euro. 


Para 2025, segundo o Expresso, o governo prevê um crescimento da despesa pública total de 4%. Assim sendo, se se realizar a previsão relativamente ao andamento do PIB disponibilizada pela Ameco e, por isso, se em 2025 o PIB nominal crescer cerca de 4%, isto significará que no próximo orçamento o peso da despesa no PIB não se alterará.

Uma despesa pública em % do PIB que será em 2024, confirmando-se as previsões, mais de 6% menor em Portugal do que na Zona Euro e que em 2025, com todas as carências que o país tem, não crescerá. 

Nada disto impede a Iniciativa Liberal (IL) de vir afirmar que Portugal “tem uma despesa demasiado elevada”. Demasiado elevada relativamente a quê? - Pergunto-me. 

E, claro, como a ‘literacia financeira’ da IL não deve permitir-lhes compreender que a poupança resulta do investimento – e não o contrário -, nem uma palavrinha para o facto das despesas públicas de investimento em % do PIB serem em Portugal, desde 2012, inferiores às da Zona Euro. 

Acresce que esta conclusão da IL surge num momento em que ainda não se conhece o orçamento, dado que a arbitrária e pós democrática Comissão Europeia, segundo (outra vez, link anterior) o Expresso, ainda não se dignou a informar-nos de quanto do nosso dinheiro, afinal, nos autoriza usar. Desconhecimento que a IL prontamente aproveitou para mostrar, como dizia Pedro Pratas, a sua ignorância, ou a sua desonestidade, ou (quem sabe?) as duas. 

De resto, como dizíamos aqui, se é certo que, quando a encenação acabar, saberemos, finalmente, que orçamento nos foi autorizado, não o é menos que nunca saberemos que pressupostos (crescimento de PIB e taxa de juro) usou a Comissão para chegar ao ditame. É segredo. Por design. O que devia ser inaceitável para um país que estime a sua soberania, para uma democracia que não seja um simulacro.

De facto, por que razão havia de se permitir o escrutínio nacional e democrático das arbitrárias imposições de uma instituição supranacional com legitimidade indirecta e viés neoliberal se podemos escudar-nos na ideia, obviamente enganosa, de que se trata de pressupostos técnicos para os quais não há alternativa?

Como diria o outro, enfim. Tudo isto aponta simbolicamente para aquilo que bem poderia ser um provérbio liberal: No cair das pontes é que está o ganho

No fim, o neoliberalismo, sendo uma distopia desumana, não passará. 

Tempos perigosos

 
O perigo ameaça tanto o corpo da tradição como aqueles que a recebem. Para ambos, esse perigo é só um: o de nos transformarmos em instrumentos das classes dominantes. Cada época deve arrancar a tradição da esfera do conformismo que se prepara para a dominar (...) Só terá o dom de atiçar no passado a centelha de esperança aquele historiador que tiver apreendido isto: nem os mortos estarão seguros se o inimigo vencer. 

Walter Benjamin, “Sobre o Conceito da História” [1940], in O Anjo da História, Assírio & Alvim, Lisboa, 2017, p. 11.   

Cabral sobrevive

Amílcar Cabral discursou no centenário de Lénine na URSS (roubado a Marcela Magalhães).

Pedro Delgado Alves e Fernanda Câncio são apoiantes do colonialismo sionista e contam-se entre os subscritores de um apoio a uma justa manifestação antirracista em memória de Amílcar Cabral. Também há nesse abaixo-assinado outros apoiantes da NATO e do imperialismo, mas prudentemente silenciosos em relação ao genocídio em curso na Palestina, com suporte dos EUA e da UE. 

Não imagino, nem me interessa, o que os terá levado a assinar. O que acho absolutamente incompreensível é alguém pedir a sua assinatura neste contexto, misturando-os com tanta gente boa. Política unitária não é isto.

O que vale é que sei que Amílcar Cabral sobrevive indomitamente a toda esta desmemória, até porque há quem o tenha acabado de editar, como as edições Avante!, e o leia e discuta, use e mobilize, hoje em dia.

Cabral inscreveu-se criativamente na tradição marxista-leninista, partindo da situação histórico-geográfica concreta que era a do seu povo e indo para lá dela, digamos. Isto foi precisamente sublinhado anteontem por Flávio Almada, numa oficina realizada no âmbito das celebrações do centenário, em Coimbra. 

Cabral morreu pela libertação da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, nacionalista revolucionário que era, dando um contributo maior para a luta internacionalista contra o colonialismo e contra o imperialismo, logo contra o racismo. 

É o racismo que leva hoje à desvalorização das vidas palestinianas ou que serve para tentar dividir a classe trabalhadora desta semicolónia.

quarta-feira, 11 de setembro de 2024

As iniciativas liberais matam


Na primeira fila do Chile de Pinochet (quarto a contar da esquerda): “pessoalmente, prefiro um ditador liberal a um governo democrático a quem falte liberalismo”, disse F. A. Hayek (1899-1992) ao jornal chileno El Mercurio, em 1981, parte de uma longa e consistente intervenção a favor da ditadura neoliberal chilena. 

Chega, IL e -liberdade, de onde vieram governantes do PSD, filiam-se explicitamente nesta tradição de economia política, de eterna desconfiança em relação à democracia dita “ilimitada”.

Uma tradição que vem dos anos 1920, quando o neoliberalismo começa a ser forjado, em reação ao socialismo e à crise do liberalismo dito clássico. Hayek foi discípulo de Ludwig von Mises (1881-1973), embora tenha discretamente rompido com ele em questões teórico-metodológicas e de política pública (agenda e não-agenda do Estado, como disse na esteira de Bentham). 

Cada pensador tem o seu cunho, num feixe de ideias neoliberais em movimento, com o pluralismo necessário, como em qualquer ismo dinâmico, já o defendi em artigos académicos e em livro. Mises e Hayek partilham, no entanto, a mesma aversão às implicações socializantes da democracia militante e igualitária. Em 1927, no livro Liberalismo, Mises afirmou: 

“Não se pode negar que o fascismo e movimentos semelhantes, visando ao estabelecimento de ditaduras, estejam cheios das melhores intenções e que sua intervenção, até ao momento, salvou a civilização europeia. O mérito que, por isso, o fascismo obteve para si estará inscrito na história.”

Não são aberrações, são consistentes e pensados expedientes violentos de classe. Milton Friedman, defensor de Pinochet desde a primeira hora, alinhou pelo mesmo diapasão e os seus discípulos chilenos também, claro. As iniciativas liberais matam por ação e omissão. Repito o que escrevi há um ano.

O livro Pinochet’s Economists de Juan Gabriel Valdés é a história intelectual da formação da economia política neoliberal no Chile, do nascimento dos Chicago Boys, da formação doutoral bem financiada durante décadas no Departamento de Economia da Universidade de Chicago à transferência de homens armados com essa formação para o bem conectado Departamento de Economia da Pontifícia Universidade Católica do Chile.

O programa económico neoliberal da ditadura militar, o “tijolo”, foi ali criado. Os quadros económicos da ditadura militar foram ali recrutados. Um dos personagens mais sinistros desta economia que matou chama-se Sergio de Castro, de professor a ministro, depois da “imensa alegria” de ver La Moneda ser bombardeada. Teve a imensa alegria de ser um a cortar as despesas de educação, de saúde ou de habitação em mais de 50% e de ver a economia a afundar 12% em 1975 e a colapsar ainda mais em 1982-1983. Em 1986, o PIB per capita chileno era ainda inferior ao do início da década anterior, como sublinha José Luís Fiori

Durante a ditadura, o emprego e o poder de compra dos salários nunca recuperaram da desvalorização social imposta a tiro. A ditadura teve de socializar as perdas dos bancos na crise dos anos 1980. A indústria também não recuperou. A pobreza chegou a atingir mais de metade dos chilenos e o Chile tornou-se um dos países mais desiguais do mundo. Houve uma maciça transferência de rendimentos do trabalho para o capital. 

As iniciativas liberais, que começaram na prática há cinquenta anos, matam. São um desastre para a grande maioria. E eles sabem isso, até porque trabalham para a minoria.

E como explicar isto?

No seu espaço de comentário semanal, Luís Marques Mendes apresentou um gráfico, com dados do Ministério da Educação, segundo o qual 223 mil alunos vão iniciar o próximo ano letivo sem aulas a uma disciplina. Um valor que reflete, alegadamente, uma redução de 31% face ao ano letivo anterior, quando eram cerca de 324 mil - de acordo com a atual tutela - os alunos que se encontravam nessa situação.

Sucede, porém, que à data (setembro de 2023), o governo do PS então em funções estimou que o número de alunos a iniciar o ano letivo sem professor a pelo menos uma disciplina rondaria os 80 mil. Ou seja, um valor substancialmente abaixo do agora estimado pelo atual governo, e que foi inscrito, de resto, no próprio «Plano +Aulas +Sucesso».

Sucede ainda, por outro lado, que os 324 mil alunos (em setembro de 2023), diferem também, e de forma igualmente muito significativa, de outras estimativas vindas a público. É o caso da insuspeita FENPROF, que estimou à data um valor de 92 mil alunos; do movimento Missão Escola Pública (120 mil alunos), ou do Expresso, que na edição da semana passada apontou para cerca de 137 mil alunos sem professor a pelo menos uma disciplina em 2023, revelador de um agravamento da situação, em 30%, no presente ano letivo.


Estamos pois, nestes casos, perante valores relativamente próximos (a oscilar entre 80 mil e 137 mil) e que contrastam de forma abissal com os 324 mil alunos que, segundo o atual governo, não tinham aulas a pelo menos uma disciplina no início do ano letivo anterior. Tal como estamos, também, perante estimativas de evolução de sentido contrário, em que apenas o governo prevê que o número de alunos sem aulas a pelo menos uma disciplina desça (para 223 mil) no ano letivo que agora se inicia.

São, de facto, diferenças demasiado exorbitantes para que possam ser explicadas pela volatilidade dos dados, própria dos dias que antecedem o início de cada ano letivo. Ou seja, não sendo explicitados os critérios em que assentam os valores divulgados pela tutela, é legítimo pensar que o governo apenas pretendeu, num exercício de contabilidade criativa, inflacionar o número de alunos sem aulas em 2023, para agora poder dizer, recorrendo a esses números, que o seu plano funcionou.

¡Allende, presente! ¡Unidad Popular, ahora y siempre!


Trabajadores de mi Patria, tengo fe en Chile y su destino. Superarán otros hombres este momento gris y amargo en el que la traición pretende imponerse. Sigan ustedes sabiendo que, mucho más temprano que tarde, de nuevo se abrirán las grandes alamedas por donde pase el hombre libre, para construir una sociedad mejor. 

¡Viva Chile! ¡Viva el pueblo! ¡Vivan los trabajadores! 

Estas son mis últimas palabras y tengo la certeza de que mi sacrificio no será en vano, tengo la certeza de que, por lo menos, será una lección moral que castigará la felonía, la cobardía y la traición.

Salvador Allende, Santiago do Chile, 11 de setembro de 1973.

terça-feira, 10 de setembro de 2024

O que dizer, o que fazer?


O que dizer do concerto de Sérgio Godinho, com Capicua, do passado sábado, na Festa do Avante!? Foi em crescendo, agarrando a multidão e fazendo dela, e com ela, coro. Sentem-se as décadas em cada fibra de Godinho, um orgulho, sente-se a bela passagem de testemunho para Capicua e para tantas outras. Sente-se que foi “o primeiro dia do resto da nossa vida”. Sentiu-se, sentir-se-á para todo o sempre. 


O que dizer da apresentação do livro Cinema e Dialética, de Sérgio Dias Branco? Talvez possa parafrasear o Padre António Vieira: compreendem-no os que não sabem e têm muito que compreender os que sabem. Um velho perguntou francamente: explicas-me isso da dialética? E ele explicou tão bem, mas tão bem. Os muitos jovens também ouviram, com toda a atenção. E “quem quer mandar uma mensagem não faz cinema, envia uma carta”: há mais, muito mais, para lá da mensagem na arte em movimento histórico, aprendi. 


O que dizer da feira do livro e do disco, da comida deliciosa nos pavilhões de Coimbra e da Madeira, das horas de conversa bem regada, dos encontros fraternos, das pessoas que já não via há décadas e que nem sempre reconheço à primeira, da memorável intervenção de Manuel Loff sobre política de memória de abril, das bancas da cidade internacional, onde não estamos sós, dos doces que esgotaram logo no meu turno em Coimbra, no final da Festa? “Lamento, mas já não temos o delicioso arroz doce”.


O que dizer, o que fazer? Sempre as mesmas questões. Haja esperança nas respostas da ação coletiva, deste coletivo, condição necessária, embora naturalmente não suficiente, para qualquer alternativa digna para este país. E, sim, precisamos de ir escrevendo um romance do comunismo em Portugal, talvez sem tantas mágoas, ao contrário do norte-americano. Afinal de contas, neste país houve uma revolução democrática e nacional.

Um jornal pelo jornalismo


Nas estruturas mais frágeis, onde não existem sequer as instâncias de auto-regulação capazes de oferecer alguma resistência e impor valores editoriais, como os conselhos de redacção ou uma massa crítica profissionalizada, multiplicam-se os atropelos éticos e a desfiguração do jornalismo atinge uma dimensão quase grotesca.

Carla Baptista, Tudo pelos «media», pouco pelo jornalismo, Le Monde diplomatique - edição portuguesa, setembro.  

segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Para uma comunicação social

Festa do Avante! em destaque num jornal que não é público...

Pov: que grande comício, carago! Jornais nacionais: qual comício? As capas dos jornais diários de hoje demonstram bem o grau de desinformação a que estamos expostos. Este não é um problema "apenas" de informação, é do próprio regime democrático.

Infelizmente, a imprensa dominante já só pode ser designada de burguesa. Os proprietários dos meios de produção da informação controlam a linha editorial sem mediações, em parte devido à acentuada proletarização dos jornalistas, por via da precariedade e dos baixos salários. 

As desigualdades entre a correia de transmissão do patrão no topo e a base são avassaladoras, sem falar das “estrelas” que colaboram e que ganham mais do que muitos jornalistas somados. Enfim, a realidade tem mesmo um viés desgraçadamente marxista. 

Para contrariar este processo, e tal como noutras áreas decisivas da vida nacional, precisamos de mesmo de uma economia genuinamente mista, condição necessária para que a comunicação possa voltar a ser mais social e para que democracia possa avançar, como já defendi em polémica com Vital Moreira. 

Isto exige sindicatos fortes, nacionalizações e apoios públicos, mas, neste último caso, apenas a projetos cooperativos, ou seja, a projetos que reconheçam a importância do controlo pelos jornalistas do processo de produção da informação.  

Sentir a ação e a opção coletivas


A Festa! só nos faz sentir desta forma porque nela cabe tudo o que mais nos é significativo, tudo o que mais queremos: os afectos, os projectos, a gentileza pronta, a porta escancarada para a realidade de que é possível vivermos de olhos postos uns nos outros, de braços estendidos uns para os outros. Recomeçamos sempre mais prontos. Feliz ano novo!

Ou se está com os que querem aprofundar a política de direita e concluir o processo contra-revolucionário, ou se está com as forças de Abril e da Constituição. Ou se governa para a maioria, ou se está ao serviço de uma minoria que se apropria de grande parte da riqueza que é criada. É este o desafio mais importante e a opção que está colocada aos democratas e patriotas.

domingo, 8 de setembro de 2024

Ignorância ou desonestidade?

No quadro plurianual das despesas públicas apresentado pelo governo na passada sexta-feira pode-se ler que a receita prevista de impostos para 2025 seria de quase 294 mil milhões, um aumento de mais de 50 mil milhões e de 21% face a 2024. 

Quem conhece minimamente os dados económicos do país chegaria facilmente à conclusão de que estes valores não se poderiam referir exclusivamente a impostos (em contabilidade nacional os impostos cobrados em 2023 foram de cerca de 67 mil milhões e as contribuições para a segurança social 33 mil milhões). De facto, como mais tarde esclareceu o governo, estes valores incluem outras receitas assim como financiamento obtido por emissão de dívida pública. 
 
Perante estes dados, a iniciativa das liberdades censitárias reagiu da seguinte forma:


Das duas uma, ou o partido que faz dos impostos a questão central de praticamente toda a sua ação política não tem a mínima noção do seu tema de eleição ou então decidiu, conscientemente, cavalgar uma terminologia infeliz do governo para iludir os portugueses. Qualquer uma destas alternativas não surpreende.

Balanço de uma privatização em curso

Na passada semana, a ministra da Saúde deu uma conferência de imprensa para, alegadamente, proceder a um balanço da execução do plano da saúde. Mas mais que o plano e a sua execução, o momento terá servido sobretudo para tornar públicas duas medidas, manifestamente lesivas para o SNS (como Tiago Santos já aqui assinalou), que evidenciam o empenho do Governo na privatização do setor. Ou seja, o balanço do plano parece ter sido apenas um pretexto, uma espécie de papel de embrulho, para ofuscar o significado e alcance político dessas medidas.

Para esse objetivo, até a assunção, por parte da ministra, de que «nem tudo correu bem» - com apenas 8 das 15 medidas urgentes do plano concluídas nos três meses previstos - ajudou a dar um ar de boas intenções e a preparar o anúncio das tais boas notícias: a criação de 20 centros de saúde com gestão privada e financiamento público (aprovada no dia seguinte), e a atualização dos preços das ecografias obstétricas convencionadas com o setor privado.

No caso das ecografias pagas aos privados, estamos a falar de aumentos muito expressivos, como ilustra o gráfico seguinte: de 55€ por cada ecografia realizada no 1º e 3º trimestre da gravidez, e de cerca de 80€ por cada ecografia realizada no 2º trimestre. Globalmente, está em causa uma despesa a rondar os 3,6M€, que poderia e deveria ser investida no próprio SNS, capacitando-o e reforçando a sua autonomia na realização destes exames.


No caso dos 20 centros de saúde privados com financiamento público - já sintomaticamente saudada pelo presidente da Associação Portuguesa de Hospitalização Privada (em linha com a satisfação do diretor executivo da Associação de Estabelecimentos de Ensino Particular e Cooperativo, pelo aumento dos valores por turma nos Contratos de Associação) - a lógica é a mesma. Em vez de investir no SNS, o Governo paga com o dinheiro de todos o surgimento de novas unidades privadas, com a agravante de lhes oferecer condições de gestão que nega às unidades de saúde familiar públicas. Para além de, não menos grave, esta medida incentivar a entrada de médicos mais jovens no privado, em vez de os fixar e atrair para o serviço público de saúde.

É claro que a conversa para dissimular a «ida ao pote» (lembram-se?), e fazer da saúde um negócio patrocinado com recursos públicos, é a de sempre. Em vez de assumirem com clareza ao que vêm, argumentam, com a sonsice habitual, que o privado apenas está a complementar o serviço público e que o importante é assegurar o acesso à saúde, não importando quem presta os cuidados. Tudo isto enquanto se procede à transfega de recursos para os agentes privados, financiando a sua expansão, os seus lucros e a sua capacidade para ir buscar mais médicos e outros profisisonais ao SNS, deixando-o simplesmente definhar. Até que seja tarde demais.

sábado, 7 de setembro de 2024

Com drama


Carmo Afonso foi saneada da última página do Público. Era uma das cronistas mais populares e nenhuma explicação foi dada, logo a mais óbvia permanece. Foi substituída por Pedro Adão e Silva, mais conforme à sabedoria convencional, a que não passa sem verberar contra “o populismo”. Por exemplo, até na TAP conseguiu convocar umas supostas “instrumentalizações populistas desastrosas”, mas sem dizer quem, quando ou porquê. 

Mais importante, muito mais importante, desde que começou a escrever há meses na última página, Adão e Silva ainda não encontrou oportunidade para se debruçar sobre o genocídio em curso na Palestina, mas já escreveu várias vezes sobre Kamala Harris, incluindo sobre os seus gostos musicais. É uma das principais apoiantes do mortífero colonialismo sionista e já garantiu que vai persistir na linha de sempre dos EUA. 

Carmo Afonso escreveu no Público que “a desdramatização daquilo que é dramático é uma modalidade nacional”. É uma modalidade que Adão e Silva pratica, tal como o surf, sobre o qual de resto já escreveu bem. Será que Pedro Adão e Silva vai continuar a desdramatizar também pelo seu silêncio?