31.12.06

looking forward

Elizabeth Murray. Dis Pair. 1989-90

Olho em frente por amanhã, deixando para trás, para sempre, todas as penúrias. Amanhã tudo o que existe de bom continuará a existir e tudo o que não presta terá mirrado naturalmente até desaparecer sem resíduos. O ar será confortável na cara e no peito, os olhos estarão brilhantes sempre. Os que nos amam amar-nos-ão ainda mais e nós a eles, ondas amáveis e largas acudirão a banhar-nos, até ao ponto exacto em que desejemos trocar de bonança, sem nunca desafinar a harmonia. A desarrumação terá um ângulo novo, desvendando o gáudio afinal inocente e imaculado de inteligências fecundas. É escusado lembrar que os conceitos de arestas cortantes ou exalando enxofres, sangue e urina, sejam eles de chagas a devastação polar, passarão a rolar polidos com um chilreio de espanta-diabos a uma distância lúdica (e já não de segurança). Os portugueses com mais de vinte e cinco anos terão em média menos seis quilos de espessura e franzirão o sobrolho apenas na utilização do fio dental propriamente dito, ou não, sendo esse sério caso. As mentes luminosas e reconfortantes que eu visito na blogosfera continuarão a permitir que eu me alimente nos seus espíritos. Algumas pessoas que vêm aqui de vez em quando deixarão ainda atrás dos seus clics esta grata dúvida de que, se calhar, existimos de verdade e, afinal, andamos todos por aí, não é que andamos mesmo?!

30.12.06

Maçadora

Ainda acho a pena de morte uma grande maçada, talvez ainda maior. Saddam lá foi executado, exemplarmente: os carrascos vêm da banda desenhada, com a armadura moral do homem aranha, a corda é vulgar e orgânica, a morte foi rápida, o executado parece um cão. Saddam interpretou magnificamente o papel do mau de uma história reles em que o bem vence para sempre e isso não tem o mínimo valor.

26.12.06

Em tempo


Fizeram-lhe ver que desejar a alguém, como gesto superlativo, a concretização dos seus desejos é como condenar essa pessoa à asfixia pelo excesso de si mesma, ao definhamento pela carência de crise. Que quando se quer fazer um desejo eloquente e grandioso é necessário falar de novos sonhos, de outras esperanças, ainda e sempre radiosas. Onde encontrar agora um símbolo gráfico, um ícone desta ideia, que possa ficar bem ao lado da inscrição I am not your love, I am your lover (ou seria I am your love though you are my lover...) ?

24.12.06

Postal de natal

I wish you a merry xmas
i wish you a merry xmas
i wish you a merry xmas
and
(again!)
i wish you a merry xmas
i wish you a merry xmas
i wish you a merry xmas
and
a happy new... (again!!)
i wish you a merry xmas
i wish you a merry xmas
i wish you a merry xmas
and ... (yes yes yes) a...

Bruce Weber

23.12.06

Entidades descartáveis


Se um embrião é, por natureza, uma entidade descartável - e será, assim, se assim se quiser, um caso de vida humana descartável, so is life - profusamente sustentada por tantos óvulos e tantos espermatozóides em constante reboliço, que andam por aí para isso mesmo, a identidade ainda o é muito mais. Com a mínima diferença de que não o é por natureza. Troca-se o objecto amado, deliquesce-se o sujeito, um nome dito outramente - será o meu? soa diferente, quem serei? Descartável esse eu que vive do nome, e já nem falo dos números de cidadanias e pertenças que um dia, dizem-no ministros, serão únicos - o que para o efeito pouco importa. Já nem falo de ruas e andares, de endereços electrónicos, de ícones e santinhos, etiquetas de casacos. Nem do cartão de eleitor, nem do nome, de novo, declamado por um oficial de justiça num claustro que também pode ser de hospital, para receber uma pena ou uma pica. Há quem se tome pela sua identidade, isto é, pelas suas identidades. Descartáveis. Há um país inteiro a boiar nisto. Como se pode desejar bom natal?

10.12.06

O cravo e a ferradura

Quando se dá desconto ao que diz o Jardim, o que é que não está a ser levado a sério? O Jardim ou as instituições da democracia? E porquê?

O peso das culpas ligeiras


Por causa das novas regras sobre segurança nos aeroportos, passou a andar exposto ao mundo o afundamento sem jeito do pequeno presente do regresso, sucumbindo num dos cantos do saco de plástico, sempre grande e sem forma mas agora também transparente, das lojas duty (but not guilty) free.

8.12.06

Sobre rapazes de mentes magníficas muitos anos depois

Pablo Picasso. Maquette "Minotaure". 1933.
Alguns rapazes adoptam figuras e formas bizarras e é sobre elas que depois transportam os sinais das suas mentes magníficas. Juntam-se, por exemplo, três ou quatro. Ajuntam-se em torno de uma roda de barriguinhas redondas, que eles montam na giga, gaiatos ainda e prontos à bravata, às cavalitas sobre o que outrora teriam sido colunas, numa nuvem do tropel contínuo dessas mentes que os possuem e velam por eles e continuam a brilhar. Os olhos lumem, tal e qual como antes, ou mais agudos ainda. Interceda de alguma nova dobra ou pela liana de pêlo surreal um fumo ligeiro, um véu humilde, uma discreta declaração de que o corço, o potro fúlvido já não está lá, não lhes faz diferença de monta. É guerra que não perdem. O animal partiu mas o esplendor ainda é o aroma alterno aos cheiros adocicados já tão pouco vegetais. Seja sapuda e vermelha a língua, brilhe, empastelem-se as palavras, um cicio não eréctil esborrache as sílabas moles de frases encurtadas, babem-se pelas meninas e passem a nu o strip das amadurecidas obtusamente em denial, são ainda belos animais mansos em pasto. A ternura lúbrica que inspiram.

1.12.06

Accroché à l'ombre

André Breton. Poem-Object. December 1941
Poderia dizer:
ces terrains vastes
de mon coeur maison
vaincue à la lune où j'erre
et object de poème
Poderia dizer só:
maison de l'ombre
j'erre mon coeur.
Poderia mesmo dizer apenas:
accrochée à l'ombre
É provável que em todos estes casos se tratasse ainda de dizer qualquer outra coisa igualmente óbvia.