quinta-feira, 4 de julho de 2024

Viagens I

 Viajar de autocarro, avistar  cá de baixo,  através da janela, as serras azuis ,  esfumadas lá ao alto, recortadas como pano de fundo e logo,  mais a baixo, os morros,   aqui e ali  salpicados  pelo casario,  sem grande preocupação. À minha frente   aglomerados habitacionais sem estética organizacional, a sufocar as bermas da  estrada,  serras e casas,  parecem-me refletir um  aspeto  desagradável,  quiçá  eu me projetasse nelas.  Estávamos a meio do Outono, sentia uma tristeza, uma mágoa cavada. Os céus  pesados,  manchados  e riscados acentuavam ainda mais o meu estado de espírito.   A viatura rolava agilmente  de uma curva a outra, metia por troços apertados, desviava cautelosamente quando vinha outra em sentido inverso. Dava mesmo a impressão de que  instantaneamente chocariam e  por uma fração de segundos o acidente ficava suspenso.  Apesar dos sobressaltos,  ia sentindo um certo adormecimento cerebral  produzido pelo rolar invariável  e arrastado do  motor. Talvez o  quebranto  das noites mal dormidas, ou   a influência da paisagem, ou os rostos desconhecidos dos outros passageiros...havia um entorpecimento no  ar, qualquer coisa semelhante a  um balão cheio de gás poluído a espalhar o pó maligno das alturas. Sei que não sei se  sou  negativa em consequência das vicissitudes da vida mas a vertente  realista faz parte de mim  e existe no fundo de cada um de nós, mesmo que rudemente educados, uma certa crença, o misticismo  é uma apetência de muitos de nós,  agnósticos ou não. Basta surgir diante dos nossos olhos, uma montanha coberta de neve, uma  tarde estranhamente  cerrada   de nevoeiro, um céu noturno  cheio de pontos estrelados,  cujo encanto é inegável.  A gritaria das gaivotas,  e, o pano místico sobe  e invade como uma espessa cortina de fumo. Subitamente, chegam até mim fragmentos de conversas dos outros passageiros; " ...você assiste à missa e ouve o padre dizer ; Meu filho tem paciência, amanhã vai  ser diferente, tenha esperança..."

"E  um tipo espera, espera e nada!"-  risos
" Passa a vida a escutar essa frase e naturalmente  habitua-se a ela, o pior é que , acredita nela. Ah! Torna-se escravo dessa  treta!
" Mas não deve ter esperança? "
" Esperança naqueles que metem a mão no seu e no meu  bolso? Eles não deixam de roubar!"
" Pelo menos acreditar que dias melhores virão!"
" Virão? Quando? Se o senhor quiser sonhar e sobreviver à custa desses  sonhos vazios...que nunca se vão concretizar. "
" Sempre podemos viajar, aprender, conhecer..."
" Tem dinheiro para viajar? "
" Ganho o suficiente para fazer uma viagem por ano, o patrão paga com atraso."
" Ah! Os patrões são todos iguais, querem pessoal para o seu negócio lucrativo mas choram lágrimas de crocodilo na altura do pagamento...odeio patrões! E, está a compreender como tenho razão? E os seus sonhos? "
" Os  sonhos adoçam a vida, não, não me quero tornar amargo. Tive e tenho esperança que aquilo que faço dá frutos, na pessoa que me tornei, na minha família, nos meus passatempos..."
" Vai me dizer que não adoraria ser famoso e rico?"
" Não, ser famoso às vezes é uma tremenda dor de cabeça, quantos suicídios de gente famosa e rica..."
" E gente a viver à grande e à francesa!"
" Vivo bem com o que tenho e não quero perder até que...
 
Depois as vozes foram para longe,  misturaram-se com o   ronco feroz do motor do autocarro.  De  repente, chegou até mim outra música; agora eram senhoras;" ...essa gente é do piorio, ele e ela, olhe, ele quis se dar bem na vida..."
" Nunca estiveram separados?"
" Nunca! Mas  são infelizes! "
" Quando o pai ainda andava por este mundo, parece  que a família aparentava estar bem..."
" Uma família  muito desequilibrada "
" Não sei, não os conheço assim tão bem mas  são pessoas com nível de instrução  considerável  e bem de vida!..."
" E isso é tudo? "
" É uma família bem formada, pelo que sei."
" Olhe que não,  olhe que não! Há ali problemas cabeludos"
" Não fazia ideia que fosse assim!"
" É uma gente que vive de aparências..."
De repente juntou-se uma sonoridade diferente, grossa:
" Vizinhas estão a falar da minha cunhada e do meu irmão?! "


" Sro professor rocha! Não fazia ideia..."
" Estou mesmo atrás das senhoras, ouço-as bem! mas não se preocupem,  também não me ligo a essa gente, de quem falam. Somos  família pelo  sobrenome e corre-lhes nas veias o mesmo  sangue que o meu, de resto, nada nos prende. É melhor assim.
" Agora senti-me envergonhada, até apanhei um susto!"
" Eu tambem não esperava !"
" Descansem, o susto já passou e é verdade,  ( chegou-se para a frente em jeito de confidencia ) essa gente é pouco recomendável; a mim é que me envergonha desabafar convosco assuntos desta natureza... faço-o porque são vizinhas e amigas mas efetivamente o meu.... "
Na curva, o   motor do autocarro  guinchou,  assemelhante  à  matança do porco,  um grito ensurdecedor  a riscar definitivamente todas as vozes. Levantei-me rapidamente para  carregar o botão da campainha.








  

quinta-feira, 30 de maio de 2024

Sem tempo ...

 

Fui andar no cinzento  cinzentão das ruas,
das construções tombadas e ardidas ,
dos prédios  inclinados e descidos,
periclitantes à passada e  a um ligeiro sopro
À frente dos meus olhos , seguiam  no esquecimento
 os automóveis a uma  velocidade  estonteante , 
a correr desalmadamente para um ponto de fuga
Descreviam uma linha reta e desapareciam
ou fugiam de si mesmos,
ou havia mesmo muita pressa,
 ou competiam entre si,
 ou  eram devorados pela adrenalina
ou a náusea do dia carregava ansiosa no acelerador
Ou como num pesadelo, do qual queremos escapar
 e parece que não vamos conseguir acordar a tempo...

sábado, 20 de abril de 2024

Respondam

 

 Tanto estudioso de gravata ajustada
fatinho escrupulosamente limpo
escovado,  cabelo lambido,   excelente tecido
Medalhados  até ao pescoço!
Teorias e mais teorias visivelmente aplaudidas
O resultado?
Mais maleitas irreconhecíveis?!
Surtos a entrar olhos adentro
Efeitos secundários , adversos, efeitos  colaterais
boca seca, respiração ofegante,
A própria morte a arranjar canto?!
Depois, é a vez das  vestes sacerdotais
 ricas em  simbolismo e significado!
escrupulosamente preparadas para
elevar a pureza que a Divindade
exige ao seu povo?
 para honrar e reverenciar o altíssimo
Com as mãos impuras?!
Afogados em vícios? embebidos na profanação?
Ligados a crimes?!
E os mendigos à porta das igrejas?!
à espera que lhes caia uma moeda nas mãos?
Suas santidades onde estão?
Lá dentro? De altar em altar? Sempre a rezar? Em oração?
E os miseráveis do lado de fora?
Que Deus é o das batinas ?
 O coro dos indignados sobe de tom,
numa vozearia
Cria tumulto
Ruído, confusão
E Insiste!é a repetição de outros séculos...
Quem não tem memória?
Mais recente,  parcas travessuras
foram cometidas;
Arremessados
ovos coloridos contra fatos caros
atira-se tinta às estátuas!
E lá  vem:
- Não pode ser assim! contestação
não é atentado contra a democracia?!
 Nao posso concordar com estes atos de vandalismo
E outra voz   chega-se à  frente:
- Qual democracia? Conhece-a ?
Os garotos condenados pelos ovos coloridos?!
Ao tempo que não os escutam ?! Já cansa, já farta!
A eterna surdez,  a  surdez,
a fazer-se sempre e ainda  mais de surda?!
Quanto maior é o grito,
maior a surdez, maior a vingança,
maior a astúcia, maior a soberba,
maior o desdém, maior o castigo,
maior o policiamento, maior a condenação,
maior a perseguição.
Afinal, que quem querem de nós?
 Que esperam de nós?






 

terça-feira, 12 de março de 2024

Deixa uma flor na sepultura

 

Não há  qualquer vestígio  de ti;
 voz, risos, gestos ou cheiros
Nada. Quase tudo apagado...
Entrevejo-te  entre "séculos"
numa imagem diluída
 dos tempos esquecidos
Nem sei onde vives...
Tudo o que de ti
era vivo em mim
está morto e sepultado
apagado  até à eternidade
Se no fim dos meus  dias
 vieres ter comigo por qualquer motivo
encontrarás  a porta entreaberta;
Não por ti nem para ti
Mas se quiseres te despedir de mim...
Nessa altura vamos ser diferentes
sem o pretérito a incomodar os egos
Já sem tempo para  ressentimentos
pueris, estúpidos, raivas abrasivas
Velhos ódios bafientos
Suponho  que esse monte de sujidade
terá perdido aqueles odores nauseados
e insuportáveis
A tralha   inutilizada
deve  ser definitivamente abandonada
Nós, mudados por dentro;
mais generosos, mais humildes
menos ácidos, menos aborrecidos
Arrependimentos confessados
dentro de nós surja algum bom fundo...
Ou de nada, a vida, terá válido





quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

Confissões de Mulheres&Mães

 Viúva, cinco  filhos, frequentei a instrução primária com imensa dificuldade, devido às minhas limitações, no entanto,  estive sempre  atenta ao que se passava à  minha volta, ao que me aconselhavam e narravam, mais tarde, mesmo depois de velha,  aprendi igualmente  com os meus filhos, foram  uma segunda escola para mim.  Em nova tive que me   desenrascar e  estar  preparada para o mundo do trabalho. Gostei de ser útil  na minha profissão; para os meus e para fora.    Procurei  fazer o melhor  que sabia e  exigiam de mim e  ficava  a par das novidades através das revistas da altura.

 Lamento a  infelicidade de ter sido  marginalizada,  um tratamento desigual  por não ser  inteligente, não  possuir  os tais atributos físicos, que nos dias de hoje, continuam cada vez mais em alta,   todos ambicionam a beleza exterior, a interior, poucos pensam nela. Sou baixa, roliça e senti na pele os risos de troça, as alcunhas...tudo isso!
O meu marido, foi o oposto de mim; estatura  acima da média, manteve-se  elegante  até partir deste mundo, nunca o vi de outra forma; magro ou muito magro, aquele   olho azul mar espantoso, aqueles lábios grossos...Naquela altura não me cansava de o contemplar. Sempre asseado e cheiroso,  tinha cuidado com o seu aspecto, as unhas das mãos e dos pés cortadas e bem limadas, os  pêlos do nariz, e das orelhas não espetavam  para fora, e as sobrancelhas aparadas. Há homens com arbustos por cima dos olhos, o que lhes fica imensamente mal, não custa nada endireitar. Fazia a barba com frequência,  aquele rosto sempre impecável.  Aplicava brilhantina no cabelo negro e penteava-o  para trás e dava-lhe  uma boa apresentação.  Ele era bonito e conservou a sua beleza até ao fim. Casei aconselhada pelo médico,  devido a ataques e  convulsões  que me assaltavam amiúde. Comecei a namorar o pai dos meus filhos nos bancos da igreja; primeiro, troca de olhares, depois encontrava-me com ele no adro e aí  já havia tentativa de introduzir conversa, ele era muito fechado, mais tarde acompanhava-me a casa, ou esperava por mim lá na porta. Não falávamos muito, apenas diálogos curtos mas encantadores. Eu derretia-me toda com aquele jeito tímido e cabisbaixo. Com o tempo,  começaram os desabafos sobre a sua vida familiar e eu sobre a minha.  Sinal  que ambos confiavamos um no outro  e isso fazia-me apaixonar ainda mais por ele e vice versa.  O meu marido apesar de ter, tal como eu, a instrução primária,  era um homem  muito inteligente  e muito dedicado ao trabalho.
Não conheci outros rapazes, apenas aquele. Quando ficámos noivos, começou a mostrar outras facetas que até então desconhecia, proibiu-me de usar saia acima dos joelho,  blusas sem manga ou decote, nem um baton nos lábios,   tinha apenas autorização para continuar a costurar mas sair de casa, nem pensar, apenas para o estritamente necessário, só  em caso urgente. O meu lugar?  Confinada às tarefas do lar. Submeti-me à  vontade dele, esperançada  que com o casamento acontecesse uma mudança .   A cerimónia  foi marcada  para de madrugada, mais uma vez, por decisão dele. Fiquei triste, um casamento celebrado  às seis horas da manhã ,  sensação estranha  ... talvez não quisesse que ninguém nos visse. O casamento descobre  tormentos; tudo muito encoberto. Subitamente, o meu falecido marido mostrou nitidamente que o seu espírito de monge não se encaixava no papel de marido.

Ele queria viver longe de  tudo e de todos, num deserto.  A ideia seria ter filhos  junto de mim, sem instrução, descalços,  bocas famintas, babosos, ranhosos, a fungar, a pele arranhada e maltratada... Para poupar?!  Quando comecei a escutar isto, arrepiei-me, assustei-me deveras, comida a lenha?! Com que espécie de homem tinha eu casado? Um eremita? Socorri-me de  uma irmã e desabafei com ela. Que poderia fazer? Enfrentá-lo sozinha ? Com que armas? Não tinha genica!  Ele prometia que me batia, usava frequentemente violência verbal para me intimidar.  Quando levantava aquela voz de trovão, as paredes tremiam, eu  tentava argumentar até  certo ponto, depois disso calava-me. Temia que passasse à ação. Cada vez mais aproximei-me de minha mãe, já viúva na altura  e da  minha irmã mais nova, ambas a viverem na mesma casa. A minha irmã,  marcada por um divórcio que lhe  tinha caído mal. Havia  visitas nossas  periódicas  lá a casa. O meu marido nutria pela minha querida e saudosa mãe um grande  respeito e  muita  admiração. Quando  ela  faleceu percebi que tinha perdido uma âncora, perdi o meu sustento emocional.  Já que a  minha irmã ficou só,  para me defender melhor  das investidas dele,  convidei-a  a viver na nossa casa. Ele   detestou a ideia porque conhecia-a bem e sabia  que ela era diferente de mim. A princípio até me senti amparada. Ela fazia-lhe frente e media forças com ele, não permitia que ele se sobrepusesse nem a ela, nem  a mim. Cedo compreendi que havia um preço a pagar; a minha família  já não me pertencia.  Ela  reinava dentro de casa,  decidia sobre todas as coisas.  Ele calou-se, eu apoiei-a. Os meus filhos foram à escola pelo pulso dela. À medida que surgiam situações; ela na dianteira , eu nas traseiras. O que me frustrava  era sentir que  os filhos já não eram meus,  nem do pai, eram dela, só dela.  Deixei de ser  mãe  para voltar  ser a  criada.  A minha irmã  proveitou-se das minhas fraquezas para ganhar uma vida que até então não tinha conseguido. Julgo que nem eles saberiam de qual das duas deveriam amar mais. Os conflitos começaram a aumentar de volume  porque ela era muito autoritária e tratava com desdém  uma das minhas filhas.  A casa de minha mãe  foi finalmente vendida e a herança distribuída pelos vários filhos,  o que me revoltou foi  ela   ter ganho mais duas heranças além da sua,  de outros dois irmãos. As  duas que recebeu eram-lhe destinadas. Eu  respeito mas  podia  divididir um bocadinho comigo. Fui  sempre a irmã  pobre, ela, a irmã rica. Tudo,  em parte para fugir ao marido e à vizinhança que era péssima. Não esqueço o quanto devo à minha mãe. Foi a pessoa que mais me compreendeu, não  tenho dúvidas que mora no céu,  era uma excelente pessoa  para todos; família,  vizinhos, amigos, conhecidos. Apesar de tudo, a minha irmã foi uma mais valia mas as heranças deram-lhe  a volta à cabeça ,   mudou muito, tornou-se impossível, o que antes nos unia, agora,  até isso nos separava. Fiquei sem aliada, naquela casa ninguém se entendia. Foram anos de verdadeira  guerra. Tornou-se amor e ódio.  Não nos suportavamos uns aos outros.    Passei a ser rotulada pelos dois de invejosa, desajeitada e por aí abaixo...  E onde vivia  ela ? sob o nosso  teto;  cama, mesa e roupa lavada. Nunca experimentou  ser independente.

Depois, foi estudar e trabalhar fora, viajar, divertir-se com os meus filhos, conheceu um homem depois da idade, ia passar o seu mês de férias com ele,  mas   regressou sempre para nós . Ao fim de dez anos, o arranjinho acabou tal e qual uma bola  de sabão. As relações são assim; arrefecem, enfraquecem  e morrem.  Quando os meus filhos, eu e ela saíamos, o meu marido recusava-se a acompanhar-nos,  eu aparentava ser  viúva,   ou divorciada.  Ele só  saía de casa para trabalhar de forma incansável, tudo  para sustentar a família, nunca nos faltou refeições à mesa, foi sempre um trabalhador honrado e honesto,  eu ajudava com a costura até ao momento em  que adoeci da minha cabeça.  Nem sei explicar; sentia-me angustiada, aborrecida, tornei-me sombria, sem remédio .  Entristecia-me perceber que os meus filhos preferiam  a tia, ela sabia seduzi-los; era a irmã mais vaidosa, a mais  bem falante, rodeada de amigos, conhecidos e havia quem imaginasse que   ela era  a mãe deles.  Ah, francamente! Chegou uma altura em que saturei daquela vida de  clausura e fui firme, desabrochei  e comecei a sair também, a ir ao café, o meu marido criticava-me severamente porém  deixei de me  importar com isso, ao princípio sozinha, sem a companhia deles, de nenhum filho. Sentiam  vergonha de mim, eu era o oposto dela; nesta ocasião já me vestia  melhor, no entanto,  viam-me como uma tonta, sem o brilho dela, sem  aquela  lábia, eu, uma atrasada mental a tentar sair da concha numa idade tardia. Os dois... ai aqueles dois,  irmã e  marido   haviam-me  empurrado para aquele isolamento. Depois,  a partir dali,  cada um saía só; eu, o marido e ela.   Os filhos tornaram-se  independentes, no entanto,  visitavam-nos regularmente. Então, essa filha, aquela que foi rejeitada por ela e por todos nós,  acompanhava-me para todo o lado,  já me perdia  na confusão das  ruas, já  não era  capaz de caminhar sozinha, essa filha  nunca mais me abandonou. Os outros também não.  Por isso  tenho um  orgulho infinito neles .Fui piorando,  surgiram outras complicações de saúde,  tornei-me  incapaz , fui hospitalizada em  muitas ocasiões; sempre amparada pela filha e pela irmã, que também envelhecera e já não conseguia ser  a mesma,  eu restabelecia, começavam as farpas espetadas da parte dela e da minha, sol de pouca dura... Não havia forma de melhorar o  ambiente entre nós, uma desgraça.  Contaram-me que certa ocasião, o meu marido vergou e pela primeira vez, verteu   lágrimas ao ver o meu estado. Apesar  daquele manicómio,  provocado por nós três,  o meu marido , eu e a minha irmã fizemos muito pelos filhos, semeamos tudo o que conseguimos semear e por isso hoje, estamos a colher. O que eles  censuravam em nós eram as sucessivas discussões, por tudo e por nada havia  gritaria, não lhes retiro a razão.  Quando ele  adoeceu gravemente e faleceu , ficamos as duas e aí foi novamente medonho, ela gritava comigo, eu gritava com ela. Pareciamos duas loucas numa disputa enorme e assustadora. Podíamos  nos acabar ali...

Ainda assim, ela saía de casa, toda coberta de luxo, com aquele ar empertigado,  apesar de já aparentar um desgaste  evidente, senhora de si, ia passear e eu ali,  impotente, remetida à prótese que me tinha travado os movimentos. Ela troçava muito de mim,  dizia-me coisas que... Deus sabe como feriam ... eu também lhe respondia, não era santa. Logo a seguir  cobria-me um manto de tristeza e as memórias   de antigamente... Não tinha que me submeter às provocações dela, ser novamente mal tratada,  depois de velha e doente, não se admite! Criava  coragem e respondia de forma igual! Descemos ambas ao inferno. Alguns anos depois,  ela  adoeceu , depois disso acalmou mais,  ficou em pior estado que eu,  apesar de ser  mais nova. Tudo foi perdoado,  ela  perdeu a  fala, coitada,  foi-se a genica,  encontra-se  presa à cama e eu aqui sentada. Uma ao lado  da  outra. Confesso, gosto da companhia dela. Sinto muita pena  que seja desta forma, o que se há-de fazer?  Finalmente sou aquilo que me caracterizou e andou perdido a vida inteira : posso ser alegre e divertida, faladora e simpática, dizem que sou muito inteligente, quem diria?  Eu nem sabia! Neste momento  é permitido dizer o que me apetece , sem freios, sem vergonhas, sem medos, sem entraves, sem críticas maldosas.  Os meus filhos não proibem, pelo contrário,  estimulam, nem eu, nem ela  pesamos nas vidas deles,  nenhum se queixa,  sinto- me amparada e amada, temos um lugar e um espaço,  estou em  paz e sinto leveza...  A grande mágoa;  gostaria que tudo tivesse sido  diferente;  sermos mais amigos uns dos outros , no entanto,  faltou o mais importante; o  respeito. O legado? Infelizmente os filhos imitaram-nos,  não se dão uns com os outros! Os cinco de costas voltadas. Daqui para a frente, seja o que Deus quiser, enquanto ela aqui estiver e eu... vamos vivendo, eu pelo menos continuo  a viver e a querer viver, a morte já me rondou diversas vezes  ao longo da minha  vida, penso que Deus achou que não  era a minha hora  e Deus tem  as suas razões que eu aceito.  O que não vivi antes, vou aproveitar agora  e isso faz de mim uma pessoa  mais feliz. O passado? está definitivamente esquecido e enterrado. E quando partirmos que seja, ela na sua cama e eu aqui sentada. Acenamos uma à outra, atiramos beijos com a ponta dos dedos e fechamos os olhos , um anjo há- de vir ao nosso alcance e guiar-nos céu fora, nós de mãos dadas, eu arrastando-me ao lado dela e  minha mãe à nossa espera...


 

domingo, 7 de janeiro de 2024

Conto de natal

 

Paro às portas de uma mansão

Sobre o telhado do primeiro andar
 debruçadas das janelas, 
as  flores escorrem secas  e  murchas;
 algumas pretas e feias, outras  magricelas
a exalar um cheiro nauseabundo
Nem sei descrever a sua espécie...
Quem serão as gentes dali ?
Os meus olhos percorrem a fachada e eis que;
Por detrás da vidraça surge
ao centro
uma rapariga  de expressão
tristíssima,
cinzenta outonal
Por detrás da outra vidraça,
a da direita, há um rapaz
de camiseta sem mangas
a  exibir o  conjunto superior musculado
e  sorriso
malandro colado nos lábios,
 pose relaxada e sensual
Na  janela superior,  sobre um telhado  de dimensões diminutas,
surge  outra  rapariga
talvez a mais velha;
rosto enxovalhado
sobrolho carregado
 com olhos  aborrecidos
O rapaz abre a vidraça e inclina
o tronco para a janela  da  mais velha:
- Assim está muito melhor!
- Cá para mim, uma maravilha!
- Fazes a tua vida aí e eu a minha, aqui
- Nós não nos entendemos...pois não?
- Ui, há muito tempo!
-  Enjeitada,  não estás melhor assim? - o rapaz refere-se à do meio
A do meio, de  vidraça aberta  não responde
- Sim, tu, óh tontinha! Estou a falar contigo...
- Eu sou a filha que a mãe gosta mais! - declara a mais velha
- Lembrem-se  que sou o predileto dela por ser o mais novo, por ser o único  macho. 
- Mas eu  sou a mais querida, a primogénita! Ela repete-o vezes sem conta!
- Então, divides o pódio comigo?
- Naturalmente que sim!
- A parva do meio não entra nisto, fica de fora! - acrescenta a mais velha
- Ninguém da família gosta dela! - remata o rapaz mais novo
- Somos os mais importantes! Ela é coisa secundária! - responde  com desdém
- Estás a ouvir, cara de aborto  mal parido!- ridiculariza
- Que importa o que digam? Eu sei o que a mãe sente por mim!
- E o que é que a mãe sente por ti? - o rapaz troça
- A mãe ama-me! - responde a do meio
- Tu nasceste  num asilo, a mãe foi lá te buscar! Nem pertences a esta família!
- Vocês  os dois são maus! - declara
- O quê? Eu sou santa! Estás enganada, rapariga!
- Coitadinha da enjeitada  veio por engano, não devias ter nascido, entendes? - o rapaz berra em plenos pulmões 
-  Sei que a mãe me ama!
- Ama-te como a nós? - pergunta a mais velha com  sarcasmo
- Sei que não...
- Ah! Então temos razão! Nem a mãe faz disso segredo! - esclarece  o rapaz
- No entanto,  a mãe não me maltrata, tem preferência por vocês os dois, mas no  coração dela há um  espaço reservado só  para mim. - remata convicta
- Ahhhhhhhh! - ela confessou-te isso assim!? - o rapaz  exclama divertido
- De vez em quando confessa que ama os três de igual modo e trata-me por minha querida ou muito querida,  sinto! - conclui a jovem do meio
- Mentira! - brada o rapaz irritado - Sabes parva, estamos quase no natal e haverá prendas, eu vou receber das melhores marcas, as mais caras  e tu ficas com os sobejos, os restos...
-  A mim também me há-de chegar do bom e do melhor! - esclarece a mais velha
- Vou ter direito a alguns pertences do avô - explica  a do meio
- Como?! - vociferam  os outros dois.
- Sim, o diário, os cadernos, as canetas e os outros objetos, a mãe vai passar para mim! Porque tem a certeza que ficarão bem entregues .
- Espera aí,  eu coleciono antiguidades  e ela não me falou de nada?! - desabafa frustrado- a mãe não refletiu bem, nem nos consultou! Isso não pode acontecer!
- Que te interessa? Não tens estimas por nada! - adianta a do meio
- Que queres dizer com isso?  Estás a irritar! Raios te partam!  - diz o  rapaz   assoberbado, ela tem de nos consultar primeiro se concordamos com isso ou não!
- Tu não zelas as coisas, queres mas não tratas bem!
- Que parvoíce é essa? - pergunta  a espumar  raiva
- Deixas as coisas amarfanhadas, o teu quarto é o reflexo da tua desarrumação interior! - remata com convicção
- Mas que observação estúpida,  já vou aí ter contigo!
- Calma, não precisas  de te  enervar! - assusta-se a do meio
- Oh!- exclama a mais velha - ei, que está  acontecendo aí? - debruça-se sobre o parapeito da janela e vê a do meio ser atirada pela janela  e o rapaz surge a observar o efeito do que tinha acabado de fazer.
- És louco?  que fizeste?
- Que queres?  armada em santa?
- Ela deve estar morta, não percebes a gravidade disso?!
- Chegou-te uma peninha agora, como se gostasses muito dela!?
- Entre não gostar e ser criminoso vai uma diferença abismal! Eu jamais faria isso,  um gesto desses!? Por favor!
- Logo tu que também maltrataste a desgraçada, que odiaste-a, que invejaste-a!
- Que horror! Nada disso, tínhamos pontos de vista diferentes, apenas isso, não inventes.
- Hipócrita! -berra no auge da irritação - bandida!  Agora faço-te uma visitinha !
- Tem vergonha e chama uma ambulância, pode ser que ainda esteja viva!
- Como se tu te importasses minimamente com o destino da triste! Então liga tu e  chama a ambulância!
- Eu não, chama tu, foste tu que a empurraste !
- Tu és igual a mim, a diferença é que a  mataste lentamente, em fogo lento! Qual a diferença?
- Tirar a vida dessa forma, nunca! E vais preso!
- Cala-te ! Vou aí!

- Podes vir que a porta está trancada à chave! - remata irónica
- Qual é  o problema? Eu arrombo! - responde endemoniado
O rapaz  derruba a porta  com vários golpes de pés, mal irrompe o quarto da mais velha,  repentinamente leva uma  paulada forte na cabeça,  fios de sangue correm da cabeça para o rosto e pingam sobre o peito, tropeça e cambaleia, rola  sobre o chão mas volta a erguer-se com esforço e muito pálido.   A  mais velha  atinge-o  de novo com força nas  costas  o rapaz torna a dar passos incertos em direção à janela e agarra-se  ao parapeito, a arfar de dor e a tossir,  ao ver  que a mais velha se prepara para atingi-lo de novo, num último esforço atira-se  pela janela mas agarra a mais velha que  cai  com ele . Escutam-se gritos horrorizados de ambos e os dois despenham-se lá em baixo onde jaz o corpo da irmã  do meio. De repente sinto-me rodeada de um grupo de pessoas que assiste à tragédia  e ouço as sirenes da polícia e das ambulâncias.

( texto inspirado no conto de Eça de Queiroz- " O tesouro " ) 

 

domingo, 12 de novembro de 2023

Confissões de mulheres/ mães

 


 Houve uma  paixão incendiária na minha vida que  me arrastou para o fundo do poço  e eu fui porque quis. Não devia.  Queria imensamente  continuar na relação... Perdi a noção dos limites, da minha dignidade, fui a única que sofreu, a maior e principal   culpada, desrespeitei-me como até então não tinha sucedido.
Tudo começou porque certa noite   vi uns olhos castanhos brilhantes numa face  bem esculpida,  uns  dentes brancos, alinhados em conformidade e em harmonia com a cabeleira lisa,  tudo nele   era belo e novo, até a barba rala  assentava bem e tornava-o ainda mais desejável, um doce encanto.   Lembro-me como se fosse agora... de o ver entrar no "Altas horas". Havia música agradável. Não era tarde, nem era cedo.  Os olhos dos amigos precipitaram-se  para a figura que acabara de chegar,  entrou no bar  acompanhado por outro,  que por sinal, era conhecido de alguém do meu grupo. Um rapaz  semelhante na jovialidade, na beleza, na altura,  cabelo grosso e ondulado, com um ar ponderado, tez  clara e olhos profundos.  Por incrível que pareça convidaram-nos a ficar na nossa mesa  e o homem  sentou-se  mesmo  à  minha frente; Acendi toda como um fósforo,   por mais que tentasse ser discreta, a minha concentração focou-se no seu riso, evidentemente que ele se apercebeu e respondia ao sorrir de forma magnética.  Os nossos olhos cruzaram-se diversas vezes e fixavam-se  numa linguagem lasciva. Ele expressava-se com eloquência,  muito mais que o outro. O tom de voz rouco e quente enloqueceu-me, depois mostrou o quanto era combativo, erguia a voz numa verve melodiosa. A minha atenção prendeu-se aquele homem de tal forma hipnótica, que  quando todos se foram embora, do grupo, só eu restava. Éramos só nós os três. O homem que servia à mesa avisou brandamente que tinha de fechar. Saímos . Ele perguntou-me se vivia perto ou precisava que me levassem a casa. Aceitei o convite.  Era o outro que conduzia, ele sentou-se ao lado, eu ocupei o banco de trás. Imaginava uma forma de tornar a vê-lo. A conversa era entre eles,  deixei- os e fiquei a escutá-los.  Não havia dúvida que  era um indivíduo interessante e inteligente.  Quando me apeei, não resisti e sugeri a troca de contatos. Toda a noite recordei   os  detalhes daquela noite e a figura dele sobrepunha-se a tudo o resto. Passaram quinze dias e sem sinal dele. Não entrara em contato comigo... Não tive coragem de ser eu a primeira a dar o passo em frente,  entao entrei em contato   com uma  conhecida, a ponte de ligação ao amigo. Por coincidência, ela já tinha pensado em ligar-me, pois, ia convidar o grupo e os dois rapazes para a sua festa de aniversário. Não podia ser mais oportuno. Senti uma  enorme excitação,  então ía encontrá-lo muito em breve. Estava convencida que ele se sentia  atraído  por mim, tal como eu por ele.
Foi uma festa bonita; houve luz, cor, alegria, dança, muitas prendas à aniversariante. Como é óbvio,  impacientei-me  para voar até  aos braços daquela perdição,  doida para receber o convite.  O meu coração  acelerou quando aconteceu.  Finalmente ele tinha vindo na minha direção e puxou- me para si com aquele ar roqueiro ou pirata, ou a mistura dos dois, já nem sei, foi como se pulasse  diretamente  para as nuvens. Ele exalava um odor a tabaco imiscuído com perfume, um peitoril  robusto com  medidas exatas,  apoiei-me nos ombros espaçosos. Que rosto perfeito, agora mais próxima, podia ver com mais acuidade os olhos  castanhos mel. A expressão  com que me fitava, era uma verdadeira tentação. Foi bom ouvir aquela voz quente e rouca só para mim. Ele dominava vários assuntos e expunha  com ponderação, calma e firmeza   admiráveis. Aquela noite, os meus olhos não o largaram. Os deles requebrados  para mim, nem me apercebi de mais nada. Trocamos de par, dancei com o amigo dele, um rapaz bonito e atraente, contudo, muito  calado e sério. Talvez triste, pensei eu na altura.  No fim da festa levaram-me a casa. Quando entrei , só me apeteceu dançar sozinha de tão feliz que me sentia.
No dia seguinte tomou a iniciativa de me  convidar para sair
. Nem queria acreditar. Repetiu no dia  posterior o mesmo; Espantoso, era aquilo pelo qual aguardava.  Quando chegou, a dirigir o jipe, fiquei ligeiramente desapontada, o mesmo amigo à frente, ao lado, eu a imaginar que seríamos só nós os dois.
Começamos a sair com alguma frequência,  os três. Calei a decepção e esperei que o tal amigo se afastasse naturalmente. Quando uma tarde, fui mais longe, tentei abordar a questão de forma diplomática, a resposta imediata; o amigo tinha sido diagnosticado  com  autismo desde os tempos de escola e era discriminado por isso. Ele  sentia-se responsável pelo outro. Arrastava-o  consigo para todo o lado, não ia deixá-lo sozinho em casa. Abandonado. Mostrei a minha complacência, então,  o amigo sofria  de autismo?...sim, tudo nele era estranho.  Demasiado  introvertido, parcas conversas, sem risos... sem alegria... devia ser isso.
Não obstante, a  justificação não me havia convencido totalmente, ainda não se tinha aberto a oportunidade de ficarmos a sós. O amigo rondava por perto, como se fosse um fantasma ou ficava mesmo ao nosso lado. Outra pergunta subiu-me aos lábios, o amigo também acompanhava-o ao ateliê? Partilhavam o mesmo quarto?   Surgiu outra pergunta, quando, em que momentos não estariam juntos? Nessa altura, lembro-me que ele se  levantou da mesa do café a correr. Não percebi o que teria sucedido,  parecia assustado. Afinal perdera-o de vista.
Quando voltou à  mesa mostrou-se  inquieto. De repente, saímos à pressa. Não me agradava aquele paternalismo excessivo,  aquela dependência.


 De repente criou-se em mim um desejo enorme que aquele amigo desaparecesse. Se  perdesse numa esquina qualquer, numa rua sem fim ou se ele encontrasse uma amiga  e se encostasse nela ... Desta forma alcancaríamos  o tão almejado sossego. Quando eu conduzia, ele torcia o tronco, de frente para mim,  uma forma  mais fácil de  comunicar  com o amiguinho  sentado atrás,  eu percebia  o braço avançar  e  a mão  tocar a perna do outro, num afago. Aquilo era deveras um massacre para mim. O amigo, era um homem, não se tratava de uma criança, para ser tratado como tal,  nem sofria de  autismo profundo. Então porquê toda aquela devoção?  Os beijos que trocávamos eram quase sempre apressados, superficiais, com pouco  ardor. Ele era extremamente carinhoso e afável, porém intimidava-se na  presença do outro. Eu notava esse embaraço. O namoro prosseguiu, se é que se pode   chamar de namoro ao que tínhamos. A minha impressão, é que eu  tinha um   romance  com dois homens; um ativo e um passivo.
Uma tarde, saí do trabalho mais cedo,  passei na confeitaria, comprei um bolo e dirigi-me à casa deles. Quando entrei, ouvi sons que me assustaram, julguei que o autista se tinha engasgado, talvez uma crise.  Abri  a porta com algum medo e pela fresta observei o impensável,  levei um tremendo baque; estavam sentados, um ao lado do outro. Havia entre os dois homens uma cumplicidade maliciosa. O autista;  de  zip das calças aberto, a mão do outro a acariciar o órgão genital. Até a masturbação?!Que nojento! O autista  não usava as próprias mãos?!Tremi toda, voltei a sair devagar, puxei a campainha com força. Surgiram à porta com um ar surpreendido por haver tocado  com semelhante força.
Fiz um  tremendo esforço  para dissimular o desapontamento  sentido . Nessa noite, ele questionou-me sobre o que me teria acontecido. Afirmei que nada me afetara. Quando regressei deixei cair a máscara e pude  carpir à vontade. Nem queria acreditar no  que me tinha envolvido.  Deveria ter colocado um ponto final.  Infelizmente quis me enganar e convenci-me que  provavelmente não tinha visto com clareza...  provavelmente a   imaginação galopante a pregar partidas.
Nos dias subsequentes, tudo decorreu normalmente, quando chegava  até eles puxava a campainha com raiva. Ele estranhou esta  atitude, afinal a minha pessoa já era familiar. De forma alguma desejaria passar pelo mesmo constrangimento, as saídas continuaram a três;   ao cinema , a simples passeio,  ao café, a jantares. Eu encontrava-me à  beira de um ataque de nervos, ficou óbvio que não suportava mais aquele estado de coisas. Certa vez, convidou-me para passar a noite com ele, fiquei empolgada. Fantasiei se o amigo estaria por ali. Não o conhecia na intimidade,  superou as minhas expectativas. Um autêntico expert em conduzir, em seduzir, muito criativo.  Fiquei rendida, haveria de arranjar maneira de apagar aquele episódio da minha memória  custasse o que custasse. Na vez seguinte, chegou novo convite e acendi toda por dentro. Subitamente julguei  que o rumo  da situação estava prestes a mudar. 
 
Íamos  muito bem,  na intimidade ele mostrava uma mestria digna de registo. Mas  pressenti que havia mais alguém no quarto . Sobressaltei-me  e ergui-me, foi quando    vi o amigo a nos filmar,  só me apeteceu  partir a câmara na cara dele. Ainda me olhou calmo e sereno como se nada se passasse , então, o outro gentilmente  pediu que  se retirasse. Subitamente saiu da cama  também e envolto num roupão cravou em  mim os seus belos olhos  crespados e discorreu num tom desagradado e estranho; que nós não combinavamos, que eu era do contra, não alinhava em nada, a filmagem tratava-se de uma brincadeira inofensiva, para ele eu não compreendia o Autismo. Envolvi-me igualmente num roupão e disparei enraivecida que aquela situação era insuportável. Uma relação a três para mim, não resultava. Estava farta e cansada daquela sombra fantasmagórica, inusitada.
Subitamente, ele baixou a defesa,  pediu-me paciência e  desculpou-se da forma grosseira  como me tinha tratado. Que compreendia as  minhas razões. Apaixonada como estava, fechei os olhos mais uma vez. A verdade é que fui tão estúpida que voltei à cama com ele e o amigo pouco tempo depois surgiu,  ali ao lado, a assistir. Tentei me abstrair  . Quando  quis protestar, ele com um sorriso encantador e gestos subtis, conseguiu apaziguar os ânimos.   Os encontros sucederam-se  mais vezes . Até que chegou a uma altura em que o amigo já participava e transformou-se em ménage à  trois; não sei dizer quem beijava quem, quem abraçava quem, quem penetrava quem. Comecei a perceber que  não ia conseguir mudar nada. Pelo contrário,  estava tudo errado. Certa vez fitei-me ao espelho e senti vergonha, nojo e  estranhei-me.  Não podia continuar assim. Sentia-me suja, eu não era assim. Nunca tinha sido  assim. Comecei a recolher os meus pertences e pretendi sair definitivamente dali. Havia um portátil ligado, coloquei a mão inadvertidamente e eis que surge a foto do amigo a ocupar  o ecrã inteiro . O meu coração teve um estremecimento.  De repente a imagem  desaparece e dá lugar a um texto;  li  aterrorizada,  afinal os dois eram mesmo  homossexuais e mantinham uma relação aberta,   descobri também  que pertenciam a uma rede pornográfica. Saí a correr e a soprar como um touro.  O encantamento quebrara -se no meu rosto. Já  em casa,  não queria acreditar onde me tinha metido. Tinha-me iludido,  havia sinais por todo o lado. Não podia culpar ninguém,  a não ser eu própria. Sim, ele e o outro eram dois  perversos. E eu a meio,  vi tudo desde o início e participei.  A paixão assolapada manteve-me cativa.

Lembro-me que tomei um  banho demorado e nem assim me livrei  da sujidade que o corpo e a alma carregavam. Bebi, bebi muito. Queria esquecer, apagar, expulsar  o indivíduo e aquele maldito amigo de dentro de mim. Soltei palavrões, todos os que sabia, espumei  raiva,  frustração, ódio, choro, muito choro. O rebanho das  imagens porcas seguiam-se umas às outras. Baixei ao inferno. O telemóvel tocou, era ele. Desliguei. Apaguei o número . Foram dias péssimos...;  Recolhi-me durante uma longa temporada. Ele tentou  contactar comigo, por diversas diversas vezes, acabei por bloqueá-lo e risquei-o definitivamente  da minha vida. O que me revolta ainda   é pensar como a sociedade desculpa o comportamento de certa gente, por ser conhecida,  importante, figura pública. Então se eu fosse alguém das altas esferas e tivesse  ido pelo mesmo caminho ....  poucos se atreveriam a mirar-me  de esguelha. Aos grandes tudo lhes é  perdoado e esquecido.  Nos dias de hoje, não é trágico ser promíscuo, nem mau carácter, pouco importa se  fere, pouco importa se abusa, pouco importa se provoca danos irreversíveis, pouco importa se maltrata quem está próximo, não é grave, porque   a fama já se ergueu e o mal feito não tem peso  e pouco altera a vida dessa gente, mesmo sendo do sexo feminino. Muito tempo depois  soube  por uma amiga que  os dois  tinham viajado,  saí à rua e respirei de alívio.  Por causa desta "droga" perdi grandes amigos, alguns nunca mais me vão olhar como antes, nem eu própria.