Viajar de autocarro, avistar cá de baixo, através da janela, as serras azuis , esfumadas lá ao alto, recortadas como pano de fundo e logo, mais a baixo, os morros, aqui e ali salpicados pelo casario, sem grande preocupação. À minha frente aglomerados habitacionais sem estética organizacional, a sufocar as bermas da estrada, serras e casas, parecem-me refletir um aspeto desagradável, quiçá eu me projetasse nelas. Estávamos a meio do Outono, sentia uma tristeza, uma mágoa cavada. Os céus pesados, manchados e riscados acentuavam ainda mais o meu estado de espírito. A viatura rolava agilmente de uma curva a outra, metia por troços apertados, desviava cautelosamente quando vinha outra em sentido inverso. Dava mesmo a impressão de que instantaneamente chocariam e por uma fração de segundos o acidente ficava suspenso. Apesar dos sobressaltos, ia sentindo um certo adormecimento cerebral produzido pelo rolar invariável e arrastado do motor. Talvez o quebranto das noites mal dormidas, ou a influência da paisagem, ou os rostos desconhecidos dos outros passageiros...havia um entorpecimento no ar, qualquer coisa semelhante a um balão cheio de gás poluído a espalhar o pó maligno das alturas. Sei que não sei se sou negativa em consequência das vicissitudes da vida mas a vertente realista faz parte de mim e existe no fundo de cada um de nós, mesmo que rudemente educados, uma certa crença, o misticismo é uma apetência de muitos de nós, agnósticos ou não. Basta surgir diante dos nossos olhos, uma montanha coberta de neve, uma tarde estranhamente cerrada de nevoeiro, um céu noturno cheio de pontos estrelados, cujo encanto é inegável. A gritaria das gaivotas, e, o pano místico sobe e invade como uma espessa cortina de fumo. Subitamente, chegam até mim fragmentos de conversas dos outros passageiros; " ...você assiste à missa e ouve o padre dizer ; Meu filho tem paciência, amanhã vai ser diferente, tenha esperança..."
quinta-feira, 4 de julho de 2024
Viagens I
"E um tipo espera, espera e nada!"- risos
" Passa a vida a escutar essa frase e naturalmente habitua-se a ela, o pior é que , acredita nela. Ah! Torna-se escravo dessa treta!
" Mas não deve ter esperança? "
" Esperança naqueles que metem a mão no seu e no meu bolso? Eles não deixam de roubar!"
" Pelo menos acreditar que dias melhores virão!"
" Virão? Quando? Se o senhor quiser sonhar e sobreviver à custa desses sonhos vazios...que nunca se vão concretizar. "
" Sempre podemos viajar, aprender, conhecer..."
" Tem dinheiro para viajar? "
" Ganho o suficiente para fazer uma viagem por ano, o patrão paga com atraso."
" Ah! Os patrões são todos iguais, querem pessoal para o seu negócio lucrativo mas choram lágrimas de crocodilo na altura do pagamento...odeio patrões! E, está a compreender como tenho razão? E os seus sonhos? "
" Os sonhos adoçam a vida, não, não me quero tornar amargo. Tive e tenho esperança que aquilo que faço dá frutos, na pessoa que me tornei, na minha família, nos meus passatempos..."
" Vai me dizer que não adoraria ser famoso e rico?"
" Não, ser famoso às vezes é uma tremenda dor de cabeça, quantos suicídios de gente famosa e rica..."
" E gente a viver à grande e à francesa!"
" Vivo bem com o que tenho e não quero perder até que...
Depois as vozes foram para longe, misturaram-se com o ronco feroz do motor do autocarro. De repente, chegou até mim outra música; agora eram senhoras;" ...essa gente é do piorio, ele e ela, olhe, ele quis se dar bem na vida..."
" Nunca estiveram separados?"
" Nunca! Mas são infelizes! "
" Quando o pai ainda andava por este mundo, parece que a família aparentava estar bem..."
" Uma família muito desequilibrada "
" Não sei, não os conheço assim tão bem mas são pessoas com nível de instrução considerável e bem de vida!..."
" E isso é tudo? "
" É uma família bem formada, pelo que sei."
" Olhe que não, olhe que não! Há ali problemas cabeludos"
" Não fazia ideia que fosse assim!"
" É uma gente que vive de aparências..."
De repente juntou-se uma sonoridade diferente, grossa:
" Vizinhas estão a falar da minha cunhada e do meu irmão?! "
" Sro professor rocha! Não fazia ideia..."
" Estou mesmo atrás das senhoras, ouço-as bem! mas não se preocupem, também não me ligo a essa gente, de quem falam. Somos família pelo sobrenome e corre-lhes nas veias o mesmo sangue que o meu, de resto, nada nos prende. É melhor assim.
" Agora senti-me envergonhada, até apanhei um susto!"
" Eu tambem não esperava !"
" Descansem, o susto já passou e é verdade, ( chegou-se para a frente em jeito de confidencia ) essa gente é pouco recomendável; a mim é que me envergonha desabafar convosco assuntos desta natureza... faço-o porque são vizinhas e amigas mas efetivamente o meu.... "
Na curva, o motor do autocarro guinchou, assemelhante à matança do porco, um grito ensurdecedor a riscar definitivamente todas as vozes. Levantei-me rapidamente para carregar o botão da campainha.
Subscrever:
Mensagens (Atom)