Mostrando postagens com marcador Agatha Christie. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Agatha Christie. Mostrar todas as postagens

30 de novembro de 2010

Os cadernos de Agatha Christie



Depois da morte de um escritor de sucesso, os herdeiros se vêem diante de uma dúvida: o que fazer com os arquivos pessoais dos autores? Há os que decidem publicar tudo, e são criticados por desrespeitar a memória do autor – um exemplo é a indignação de críticos literários com a publicação de Os originais de Laura, de Nabokov, que não estaria à altura das outras obras do escritor.

Por outro lado, a decisão de não publicar os textos é igualmente problemática. Corre-se o risco de privar o público de textos cujo valor é inestimável. O castelo e O processo, obras-primas da literatura mundial, foram publicados à revelia de Franz Kafka, que desejava que seus textos inacabados fossem queimados após a morte. Nesse caso, a crítica é quase unânime: Max Brod, amigo de Kafka, fez muito bem em desrespeitar as vontades do autor.

Nos últimos anos, porém, o valor literário parece não ter mais qualquer influência na decisão de publicar ou não um texto inédito. A prova disso é a publicação de caça-níqueis como Os diários secretos de Agatha Christie, que acaba de ser chegar ao Brasil. Organizado por John Curran, curador literário do legado da autora, o livro reúne páginas dos 73 cadernos pessoais em que a autora escrevia rascunhos de suas obras.

Apesar de ajudar a compreender o processo criativo da escritora, os desenhos, notas e listas de personagens acrescentam pouco ao que já se sabe sobre Agatha – e não chegam nem perto da qualidade de seus romances e peças de teatro. Basta olhar as páginas reproduzidas no livro para nos assegurarmos de que a autora não tinha a menor intenção de vê-las publicadas: os cadernos são uma verdadeira bagunça, com notas aleatórias, rasuras e rascunhos de tramas de livros interrompidas por anotações cotidianas como listas de compras e números de telefone.

O principal atrativo do livro são dois contos inéditos da autora. Em A captura do cérebro, o detetive Hercule Poirot enfrenta um mistério capaz de mudar os rumos da Europa, em uma história com personagens nitidamente inspirados em Hitler e Mussolini. O conto foi recusado pela revista Strand em 1940, por seu teor político. Em O incidente da bola de cachorro, outro conto publicado pela primeira vez, Poirot recebe uma carta de uma senhora. Ao visitá-la, descobre que ela está morta. O conto nunca foi apresentado para a publicação: em vez disso, Agatha decidiu ampliar a história e escrever o romance Poirot perde uma cliente.

A qualidade dos contos, que devem encantar os fãs do detetive belga, parece ser a única justificativa para a publicação do livro. Publicá-los junto com os “cadernos secretos” é uma decisão comercial: os contos dão aos leitores um motivo para comprar o livro, enquanto as centenas de páginas adicionais permitem que as editoras cobrem um preço muito maior do que o de um pequeno livro de contos. Até chegar ao que lhes interessa, os admiradores da ficção de Agatha Christie são obrigados a enfrentar 407 páginas de rascunhos que nunca deveriam ter saído da gaveta. Um desrespeito à autora – e ao leitor.



Danilo Venticinque