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terça-feira, 3 de novembro de 2009

A tempestade

Rompe magnífica e medonha, a tempestade. Apaga-se o horizonte, não se lhe vê franja.
A ventania verga, a seus pés, mulembas e mangueiras. Cajueiros tombam cansados, cavalgados por vultos irados da floresta. Lá mais atrás, fetos gigantes abraçam-se às acácias. Em cada poça de água a tremulina mostra o chispar do céu. Emagrecida, a Lua retira-se. Nuvens descem a boiar, descarregam, desenfreadas. Caxindes tremelicam nervosos, ao passar enleante da jibóia recolhendo-se ao palmar. A capota e a prole buscam o ninho.
Sabrina salta da cabina.
- Tive uma ideia! Vamos desencaixotar embalagens. As tábuas darão para se fazer um estrado para o macaco.
- Pode ser!
Desatam cordas, enrolam oleados. A madeira sobre a lama serve de sustento. André, o ajudante, manivela, Paulo ajuda. Sabrina aproxima-se. Descuidada, desequilibra-se desamparada, tomba no charco. Estás boneca de barro, diz-lhe Paulo com voz a rir, meio abafada pelo ramalhar das árvores agitadas.
Já vais ver! Zum! Sabrina atira-lhe com lama.
André põe mão no desatino.
- Então!? Vamos mudar o pneu, ou não?
Finalmente o trabalho está feito, poderão prosseguir viagem. Gritam e pulam, os três, contentes. Pinoteiam à chuva numa dança agora nascida. Sabrina despe-se por completo. Não é mais a boneca de barro, mas doce flor de mafumeira com os longos cabelos soltando-se-lhe por peito e costas, fios de seda acariciando-lhe os seios. Paulo segue-lhe o exemplo. André também.
- Haka! Vocês, brancos, são mesmo malucos!
- E tu, meu negro, és o quê?
- Aiué, meu irmão! Aiué! Um feliz, um buereré feliz. Vocês me dão gana de ser feliz.
A nudez dos corpos, mostrada esplendorosa a cada relâmpado, não os envergonha, nem os perturba. Dão-se as mãos. Metem-se de harmonia com o cair sincopado das gotas de chuva. Dançam em roda, ora para um lado, ora para outro, à cadência do pulsar dos corações joviais, todos de uma vez, como um só rufo batendo-lhes dentro. São criaturas de fora do mundo da gente, duma lonjura onde fronteira é pau desconhecido.
A chuva bebe-os, aligeira-os da lama, percorre-os com um sopro suave. Entre trovões, a voz de Sabrina agiganta-se à do alto:
- Somos irmãos.
Paulo e André vão atrás:
- Somos irmãos.
Os três, em conjunto, lançam um grito, abafando ribombar mais forte.
Da dança sobem silhuetas atravessando as nuvens, desenhando o arco-íris a caminho da madrugada de um novo começo. As árvores vão secando o orvalho das lágrimas do céu.
Com a prole sob as asas a capota adormece. A jibóia deixa-se estar.
Os vultos da floresta fogem. A tempestade parte. A Lua ressurge, Nova, brilhante!