30.6.06

Being watched. Pai nosso que estais no céu

We examined the effect of an image of a pair of eyes on contributions to an
honesty box used to collect money for drinks in a university coffee room. People paid nearly three times as much for their drinks when eyes were displayed rather than a control image. This finding provides the first evidence from a naturalistic setting of the importance of cues of being watched, and hence reputational concerns, on human cooperative behaviour.

daqui


Por causa disto, percebo agora, ofereceram-me um dia uma pintura a acrílico sobre papel de embrulho, no qual me tinha chegado uma encomenda de víveres familiares. A obra foi produzida em solidariedade noctívaga, nas vésperas de um exame que implicava lauta assimilação de inutilidades e uma das questões que recorrentemente se cruzava por esses dias era precisamente a da minha fidelidade oculta a pautas de morigeração, apesar do verbo libertário. Incauta, deixei-me acompanhar por essa imagem ao longo do tempo. Levei-a para a minha casa adulta e até as crianças aprenderam o seu próprio nome sob o meu gesto remissivo. Já não vive quem, apesar de nunca ter sido apresentado ao autor da pintura, foi representado no quadro, com o seu olhar agudo. Eu continuo a discutir, a argumentar, a discutir-me, a argumentar-me. O olhar nunca mais se gasta. Ocasionalmente olhei-o de viés, triunfante de algum pequeno feito de naughty girl, em dias que não contribuiram para a frescura e longevidade dos meus sofás. As quais, tal qual nas pessoas, parecem andar curiosamente cosidas aos bons costumes. Com o passar do tempo, sobretudo porque naquela imagem reside hoje a única evidência física, exterior a mim, de que o olhar alguma vez existiu, vem acontecendo o estranho fenómeno de os olhos se tornarem cada vez mais significativos, a ponto de eu começar a detectar o esforço físico de focagem. Tudo visto e ponderado, num dado instante, as coisas seriam assim. Esse momento, quando o capto, devolve-me outro indício de que existo.

25.6.06

O que se faz #4. Tomando as coisas como elas são

Pépé Smit, Afterglow. [click!]
A sorte - geralmente - favorece os audazes. Muitas vezes isso parece um desperdício de recursos por parte da sorte. Todavia, às vezes a sorte não está de favores, não se percebe bem porquê, embora aconteça que os audazes, com uma frequência que merece registo, não desejem, desde o imo mais fundo do seu íntimo, ser envoltos em bafejos de qualquer tipo - não sejam eles o do hálito morno do regaço original ou, enfim, o de um outro que, de forma não menos absoluta, os recolhesse e assegurasse, fosse isso real.

Eu hoje acordei assim

Pépé Smit, Affection. [click!]
Audere est facere. Tellement faite.

O que se faz #3. Esqueci o dia

Joseph Kosuth, Wittgenstein's color.1989 [click]

Em que aprendi o meu nome.

O que se faz #2. Fazendo flores

Walasse Ting, Do You Like Red Roses?.1983 [click!]
Dá-me lírios, lírios
E rosas também.
Dá-me rosas, rosas,
E lírios também,
Crisântemos, dálias,
Violetas, e os girassóis
Acima de todas as flores...
Roses are blue
Violets are red
I'm not good with colours
But I'm good in bed
(...)

24.6.06

Speculum

Redentoras são as palavras de quem acredita nas palavras. Vivemos de palavras emprestadas. As palavras ferem a crosta infinitamente complacente da deriva que nos leva os braços, os olhos, os dedos e a pele. Acontece as palavras, ecos imortais, chegarem de alhures, e trazem o que sabem, de onde não sabe, e trazem o que podem, de onde não querem, algo maior que elas, mais verdadeiro, mais intenso, inútil e vital, na voz que as diz. E então, olhamos.

Prière

Timur Tsaku, Dancing on the Wind.2003 [click!]
Um homem exilado em casa faz tratos inconfessáveis com o silêncio vadio e mofino. E depois, ele não lhe chega. Vem dizer que afinal é na rua, o silêncio é na rua. Era, lá isso era. Oiço-o ainda às vezes. Que num recôndito sítio muito frio um véu de gelo que queima em seda se desfaça.

21.6.06

Futebol

Nunca torço por Portugal nos jogos de futebol. Não gosto da bandeira desse clube, embora alguns jogadores sejam fotogénicos. Tenho um amigo que diz que as emoções são magníficas. Autorizadas, penso que é isso que ele pretende dizer. Autorizadas, legitimadas e partilhadas. Isso é que é magnífico. Ainda adiro.

Quase-prova de vida


Caroline Golden, Waiting to Scream.1998 [click!]

É quase certo que existo: não sei o que pensar sobre a maior parte das coisas e essa dúvida quase me satisfaz.

18.6.06

O que se faz

Beth Moon, Chestnut in Cowdry Park
Não é que os dias custem a passar, não é que demorem.

16.6.06

São rosas, apenas rosas, meu adorado senhor


Delmas Howe, The Miracle (Genet´s Dream). 2003 [click!]

Que mais poderia eu trazer no meu regaço? Pães?!

14.6.06

De volta às quotas

De tecto de vidro é coisa de que não se fala abundantemente a propósito de quotas, mas é do que devia falar-se. É por haver o tecto de vidro no acesso aos lugares que não são objecto de um critério objectivo de selecção (como é o caso do acesso, mediante exames, a certas profissões como a medicina e a magistratura, para não falar do acesso à universidade) que a lei da paridade (a que insisto em chamar lei do terço) é uma medida justificada. Mas também não lhe deveríamos chamar apenas lei do terço. Preferível seria dar-lhe o nome verdadeiro e completo: lei do limite discriminatório máximo das mulheres no seio dos partidos que têm assento em órgãos eleitos da democracia representativa, porque é disso que se trata.
Ou será mesmo que as mulheres de mérito (especialmente as dos partidos mais conservadores com assento na Assembleia da República, que as socialistas devem estar já lá todas, visto que rareiam no Governo) não querem saber da política? E se sim, neste país de médicas, magistradas, universitárias, professoras, químicas, porquê? Não terá isso já a ver com o tecto de vidro?
Claro que podemos fazer de conta que não existe esse verdadeiro limite ao mérito e esperar que o bizarro fenómeno da escassez de mulheres em órgãos da democracia passe por si mesmo, mas talvez depois tenhamos de nos perguntar como convivemos com a ideia de um sistema discriminatório sem freio nem obstáculos confortavelmente sentado nas nossas instituições, a começar pelo nosso democrático parlamento. Ou então, convertemo-nos ao mérito rançoso, o que se anicha no conforto do tecto de vidro. Negando-o.

All things please the soul—but these please the soul well

Harry Holland, Theo. 2006 [click]

I have perceiv’d that to be with those I like is enough,

To stop in company with the rest at evening is enough,

To be surrounded by beautiful, curious, breathing, laughing flesh is enough,

To pass among them, or touch any one, or rest my arm ever so lightly round his or her neck for a moment—what is this, then?

I do not ask any more delight—I swim in it, as in a sea.


There is something in staying close to men and women, and looking on them, and in the contact and odor of them, that pleases the soul well;

All things please the soul—but these please the soul well.
Walt Withman, I Sing the Electric Body (Leaves of Grass. 1900)

12.6.06

Mosquito

Joel-Peter Witkin, Bee-Boy. 1981
Na lista de tudo o que sei que não acedo consta agora um Mosquito. Conceberam-no para protecção de lojistas que queriam manter à distância adolescentes indesejáveis, embora seja também útil para espantar jovens hooligans. É um som e só os novos o ouvem; aos ouvidos adultos é inexistente. Passou a toque de telemóvel, muito conveniente para utilização escolar. Se o Romeu e a Julieta estivessem assim apetrechados as coisas não teriam corrido tão mal. A não ser, claro, que acabasse a bateria ou estivessem sem rede. Ou sem saldo.

11.6.06

Contra-ofensiva

Niki de Saint-Phalle, "sky dance". 2000 [click!]

Elas ignoravam que eles não gostassem de celulite.

Ciências do natural #1

Chegar junto à parede, rodar sem esforço um brilhante objecto, frio mas agradável ao tacto, que existe para a minha mão. Ver, ouvir e cheirar a água que jorra. Ver, ouvir e cheirar a água. Que jorra. Seguir-lhe os trajectos. Submeter-lhe o corpo, receios nenhuns. A água viajou muito para chegar a mim e continua a verter. Não sei exactamente de que leito a tiraram, quantos quilómetros andou, a cor e a textura das vias por onde andou, tratos fiduciários que lhe foram dados. E é tépida. Sai da parede da minha casa, tanta quanta quero. Não a carrego, não a regateio. Posso abrir a boca e engoli-la sem ficar doente. A água continua a jorrar. Estou vários metros acima do solo, a distâncias mensuráveis de Gibraltar, do Mar Negro, da Austrália e de Mercúrio. A água corre ainda abundante e morna. Posso fazer isto todos os dias. Faço-o tantas vezes que já me parece uma coisa natural. Já nem lhe chamo chuveiro. Fico ciente.

10.6.06

Do género. Espécies procriativas aos sábados e domingos

Pépé Smit, Le Déjeuner sur l'Herbe. 2003 [click]

Quando não chove, as espécies domésticas procuram o ar livre e, à medida da compostura de cada qual, afadigam-se em valorosos entretenimentos, ora educativos, ora benfazejos, das suas crianças-programa. É preciso que o tempo passe e as microproles são boas para isso. Saber o que fazer é saber quem se é. As microproles são mesmo boas para isto. Enfim, desde que colaborem.

3.6.06

Guillaume-Benjamin-Armand Duchenne de Boulogne. Medo. Mecânica da fisionomia humana. 1862

O veto e a realidade*

O Presidente da República fundamentou o seu veto à lei da paridade - isto é, à lei do terço - dizendo que ela estabeleceria um regime sancionador excessivo e desproporcionado porque, desde logo, poderia impedir que certos partidos ou listas de candidaturas eleitorais, que não aceitem ou que não possam cumprir com os rígidos critérios do diploma, concorressem às eleições.

Terá o Presidente tido em consideração a composição efectiva dos actuais grupos parlamentares? Se teve, deparou-se-lhe o seguinte:


O BE (4 deputados e 4 deputadas) e os Verdes (1 deputado e 1 deputada) praticam já uma lei da paridade propriamente dita. São pequenos partidos, são forças periféricas, não é muito expressivo, poderá dizer-se.

Passando ao PS, verifica-se que pratica já uma remediada lei dos dois terços e picos (74 deputados e 47 deputadas). Para esta força partidária, os mínimos já estariam sendo cumpridos; viesse a lei nova, calamidade nenhuma.


No entanto, o mesmo não acontece com os restantes grupos partidários:

O PCP, enfileirando-se actualmente segundo uma lei do sexto (10 deputados e 2 deputadas), teria de dar uma volta pelas militâncias e prebendas.

Finalmente, muito, muitíssimo, imensamente inconveniente, seria a lei do terço para o PSD, que parece preferir a lei do undécimo-vírgula-qualquer-coisa (69 deputados e 6 deputadas), e para o CDS-PP, que se contenta com uma sólida lei dos duodécimos (11 deputados e 1 deputada).
Tendo em consideração estes números, a afirmação de que a lei da paridade mereceu o veto porque poderia ser prejudicial para certos partidos ou listas de candidaturas eleitorais é, no mínimo, infeliz. E ou foi feita com desconhecimento da realidade, o que estará muito mal, ou é excessivamente realista, o que é pior ainda.
*Addenda: A "quota" efectiva das mulheres no conjunto dos portugueses é superior a 50%. Um partido que não aceite ou não possa, dizia o Presidente...