A persistência da memória - Salvador Dali
- Ledo engano. Nesses últimos dias, sem que eu percebesse, ela me deitou em seu divã, me analisou, fez seu diagnóstico e me prescreveu a melhor terapia: escrever.
- E ela soube induzir-me ao tratamento: mandou-me em comentário, há alguns dias, um soneto do Mário Quintana que já se havia sumido de minha lembrança:
AH! OS RELÓGIOS
Amigos, não consultem os relógios
Quando um dia eu me for de vossas vidas
Em seus fúteis problemas tão perdidas
Que até parecem mais uns necrológios...
Porque o tempo é uma invenção da morte:
Não o conhece a vida - a verdadeira -
Em que basta um momento de poesia
Para nos dar a eternidade inteira.
Inteira, sim, porque essa vida eterna
Somente por si mesma é dividida:
Não cabe, a cada qual, uma porção.
E os Anjos entreolham-se espantados
Quando alguém - ao voltar a si da vida -
Acaso lhes indaga que horas são...
- Pois não é que o bendito sonetinho ficou me azucrinando as idéias? Foi de propósito, né, dona Rê?
- Bem, tenho uma superabundância de tempo - que, conforme alerta Mark Twain, não é dinheiro - e resolvi exorcizar o soneto tomando-o como mote e compondo uma glosa, em tercetos:
GLOSA
Não quero constar de Martirológios,
E se a hora chegar das despedidas,
Amigos, não consultem os relógios
Pois horas eu vivi tão bem vividas
Que as cantarei em salmos eloquentes
Quando um dia eu me for de vossas vidas
Em frações de minutos repartidas
Essas horas não foram, por contentes,
Em seus fúteis problemas tão perdidas
E se querem fazer-me apológios
Não mos façam como os da negra sorte
Que até parecem mais uns necrológios...
Sejam mais como beijos de consorte
E não como areia de ampulheta
Porque o tempo é uma invenção da morte
A natureza, à sua maneira
Do tempo desconhece esta faceta;
Não o conhece a vida - a verdadeira -
Para tornar tristeza em alegria
Eventos há - a alma é parceira -
Em que basta um momento de poesia
Não queiras tu tapar Sol com peneira
Pois basta de um segundo uma fatia
Para nos dar a eternidade inteira.
Inteira como o é uma caverna
Onde há túneis infindos sem saída;
Inteira, sim, porque essa vida eterna
Em divisões nunca será partida;
Toda fração é una e sempiterna,
Somente por si mesma é dividida
Assim inteira é da glória a ação:
Na derrota ou vitória aos soldados
Não cabe, a cada qual, uma porção.
Heróis e mártires serão amados
Eternamente, sem qualquer senão;
E os Anjos entreolham-se espantados
Buscando tontos resposta pedida,
E ficam sempre em grande confusão
Quando alguém - ao voltar a si da vida -
Do Paraíso a alma no portão,
Do fútil que é o tempo esquecida
Acaso lhes indaga que horas são...