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quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Paisagens Imaginárias...

HOJE
Trago em meu corpo as marcas do meu tempo
Meu desespero a vida num momento
A fossa, a fome, a flor, o fim do mundo
Hoje, trago no olhar imagens distorcidas
Pois viagens, mãos desconhecidas
Trazem a lua, a rua às minhas mãos
Mas hoje,as minhas mãos enfraquecidas e vazias
Procuram nuas pelas luas, pelas ruas
Na solidão das noites frias por você
Hoje, homens sem medo aportam no futuro
Eu tenho medo acordo e te procuro
Meu quarto escuro é inerte como a morte
Hoje, homens de aço esperam da ciência
Eu desespero e abraço a tua ausência
Que é o que me resta, vivo em minha sorte
Ah, sorte
Eu não queria a juventude assim perdida
Eu não queria andar morrendo pela vida
Eu não queria amar assim
Como eu te amei

(Hoje canção de Chico Buarque)

Retrato de Diego Rivera
  por Modigliani

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Chico Buarque e a Literatura parte IV.


"...Quando eu sair daqui, vamos nos casar na fazenda da minha feliz infância, lá na raiz da serra. Você vai usar o vestido e o véu da minha mãe, e não falo assim por estar sentimental, não é por causa da morfina. Você vai dispor dos rendados, dos cristais, da baixela, das jóias e do nome da minha família. Vai dar ordens aos criados, vai montar no cavalo da minha antiga mulher. E se na fazenda ainda não houver luz elétrica, providenciarei um gerador para você ver televisão. Vai ter também ar condicionado em todos os aposentos da sede, porque na baixada hoje em dia faz muito calor. Não sei se foi sempre assim, se meus antepassados suavam debaixo de tanta roupa. Minha mulher, sim, suava bastante, mas ela já era de uma nova geração e não tinha a austeridade da minha mãe. Minha mulher gostava de sol, voltava sempre afogueada das tardes no areal de Copacabana. Mas nosso chalé em Copacabana já veio abaixo, e de qualquer forma eu não moraria com você na casa de outro casamento, moraremos na fazenda da raiz da serra. Vamos nos casar na capela que foi consagrada pelo cardeal arcebispo do Rio de Janeiro em mil oitocentos e lá vai fumaça. Na fazenda você tratará de mim e de mais ninguém, de maneira que ficarei completamente bom. E plantaremos árvores, e escreveremos livros, e se Deus quiser ainda criaremos filhos nas terras de meu avô. Mas se você não gostar da raiz da serra por causa das pererecas e dos insetos, ou da lonjura ou de outra coisa, poderíamos morar em Botafogo, no casarão construído por meu pai. Ali há quartos enormes, banheiros de mármore com bidês, vários salões com espelhos venezianos, estátuas, pé-direito monumental e telhas de ardósia importadas da França. Há palmeiras, abacateiros e amendoeiras no jardim, que virou estacionamento depois que a embaixada da Dinamarca mudou para Brasília. Os dinamarqueses me compraram o casarão a preço de banana, por causa das trapalhadas do meu genro. Mas se amanhã eu vender a fazenda, que tem duzentos alqueires de lavoura e pastos, cortados por um ribeirão de água potável, talvez possa reaver o casarão de Botafogo e restaurar os móveis de mogno, mandar afinar o piano Pleyel da minha mãe. Terei bricolagens para me ocupar anos a fio, e caso você deseje prosseguir na profissão, irá para o trabalho a pé, visto que o bairro é farto em hospitais e consultórios. Aliás, bem em cima do nosso próprio terreno levantaram um centro médico de dezoito andares, e com isso acabo de me lembrar que o casarão não existe mais. E mesmo a fazenda na raiz da serra, acho que desapropriaram em 1947 para passar a rodovia. Estou pensando alto para que você me escute. E falo devagar, como quem escreve, para que você me transcreva sem precisar ser taquígrafa, você está aí? Acabou a novela, o jornal, o filme, não sei por que deixam a televisão ligada, fora do ar. Deve ser para que esse chuvisco me encubra a voz, e eu não moleste os outros pacientes com meu palavrório. Mas aqui só há homens adultos, quase todos meio surdos, se houvesse senhoras de idade no recinto eu seria mais discreto. Por exemplo, jamais falaria das p_tinhas que se acocoravam aos faniquitos, quando meu pai arremessava moedas de cinco francos na sua suíte do Ritz. Meu pai ali muito compenetrado, e as cocotes nuinhas em postura de sapo, empenhadas em pinçar as moedas no tapete, sem se valer dos dedos. A campeã ele mandava descer comigo ao meu quarto, e de volta ao Brasil confirmava à minha mãe que eu vinha me aperfeiçoando no idioma. Lá em casa como em todas as boas casas, na presença de empregados os assuntos de família se tratavam em francês, se bem que, para mamãe, até me pedir o saleiro era assunto de família. E além do mais ela falava por metáforas, porque naquele tempo qualquer enfermeirinha tinha rudimentos de francês. Mas hoje a moça não está para conversas, voltou amuada, vai me aplicar a injeção. O sonífero não tem mais efeito imediato, e já sei que o caminho do sono é como um corredor cheio de pensamentos. Ouço ruídos de gente, de vísceras, um sujeito entubado emite sons rascantes, talvez queira me dizer alguma coisa. O médico plantonista vai entrar apressado, tomar meu pulso, talvez me diga alguma coisa. Um padre chegará para a visita aos enfermos, falará baixinho palavras em latim, mas não deve ser comigo. Sirene na rua, telefone, passos, há sempre uma expectativa que me impede de cair no sono. É a mão que me sustém pelos raros cabelos. Até eu topar na porta de um pensamento oco, que me tragará para as profundezas, onde costumo sonhar em preto-e-branco..."
BUARQUE, Chico. Leite Derramado, Ed. Companhia das Letras, 2009.

Chico Buarque e a Literatura parte III


"...Devia ser proibido debochar de quem se aventura em língua estrangeira. Certa manhã, ao deixar o metrô por engano numa estação azul igual à dela, com um nome semelhante à estação da casa dela, telefonei da rua e disse: aí estou chegando quase. Desconfiei na mesma hora que tinha falado besteira, porque a professora me pediu para repetir a sentença. Aí estou chegando quase... havia provavelmente algum problema com a palavra quase. Só que, em vez de apontar o erro, ela me fez repeti-lo, repeti-lo, repeti-lo, depois caiu numa gargalhada que me levou a bater o fone. Ao me ver à sua porta teve novo acesso, e quanto mais prendia o riso na boca, mais se sacudia de rir com o corpo inteiro. Disse enfim ter entendido que eu chegaria pouco a pouco, primeiro o nariz, depois uma orelha, depois um joelho, e a piada nem tinha essa graça toda. Tanto é verdade que em seguida Kriska ficou meio triste e, sem saber pedir desculpas, roçou com a ponta dos dedos meus lábios trêmulos. Hoje porém posso dizer que falo o húngaro com perfeição, ou quase. Quando de noite começo a murmurar sozinho, a suspeita de um ligeiríssimo sotaque aqui e ali muito me aflige. Nos ambientes que freqüento, onde discorro em voz alta sobre temas nacionais, emprego verbos raros e corrijo pessoas cultas, um súbito acento estranho seria desastroso. Para tirar a cisma, só posso recorrer a Kriska, que tampouco é muito confiável; a fim de me segurar ali comendo em sua mão, como talvez deseje, sempre me negará a última migalha. Ainda assim, volta e meia lhe pergunto em segredo: perdi o sotaque? Tinhosa, ela responde: pouco a pouco, primeiro o nariz, depois uma orelha... E morre de rir, depois se arrepende, passa as mãos no meu pescoço e por aí vai. Fui dar em Budapeste graças a um pouso imprevisto, quando voava de Istambul a Frankfurt, com conexão para o Rio. A companhia ofereceu pernoite num hotel do aeroporto, e só de manhã nos informariam que o problema técnico, responsável por aquela escala, fora na verdade uma denúncia anônima de bomba a bordo. No entanto, espiando por alto o telejornal da meia-noite, eu já me intrigara ao reconhecer o avião da companhia alemã parado na pista do aeroporto local. Aumentei o volume, mas a locução era em húngaro, única língua do mundo que, segundo as más línguas, o diabo respeita. Apaguei a tevê, no Rio eram sete da noite, boa hora para telefonar para casa; atendeu a secretária eletrônica, não deixei recado, nem faria sentido dizer: oi, querida, sou eu, estou em Budapeste, deu um bode no avião, um beijo. Eu deveria estar com sono, mas não estava, então enchi a banheira, espalhei uns sais de banho na água morna e me distraí um tempo amontoando espumas. Estava nisso quando, zil, tocaram a campainha, eu ainda me lembrava que campainha em turco é zil. Enrolado na toalha, atendi à porta e topei um velho com uniforme do hotel, uma gilete descartável na mão. Tinha errado de porta, e ao me ver emitiu um ô gutural, como o de um surdo-mudo. Voltei ao banho, depois achei esquisito hotel de luxo empregar um surdo-mudo como mensageiro. Mas fiquei com o zil na cabeça, é uma boa palavra, zil, muito melhor que campainha. Eu logo a esqueceria, como esquecera os haicais decorados no Japão, os provérbios árabes, o Otchi Tchiornie que cantava em russo, de cada país eu levo assim uma graça, um suvenir volátil. Tenho esse ouvido infantil que pega e larga as línguas com facilidade, se perseverasse poderia aprender o grego, o coreano, até o vasconço. Mas o húngaro, nunca sonhara aprender.
Já passava de uma quando fui para a cama nu, religuei a tevê, e a mesma mulher da meia-noite, uma loura com maquilagem pesada, apresentava uma reprise do jornal anterior. Percebi que era uma reprise porque já tinha reparado na camponesa de rosto largo que encarava a câmera com os olhos saltados, empunhando um repolho do tamanho da sua cabeça. Balançava ao mesmo tempo a cabeça e o repolho para cima e para baixo, e falava sem dar trégua ao repórter. E espetava os dedos no repolho, e chorava, e esganiçava a voz, e tinha o rosto cada vez mais vermelho e inflado, e enterrava os dez dedos no repolho, e agora meus ombros se retesavam não pelo que eu via, mas no afã de captar ao menos uma palavra. Palavra? Sem a mínima noção do aspecto, da estrutura, do corpo mesmo das palavras, eu não tinha como saber onde cada palavra começava ou até onde ia. Era impossível destacar uma palavra da outra, seria como pretender cortar um rio a faca. Aos meus ouvidos o húngaro poderia ser mesmo uma língua sem emendas, não constituída de palavras, mas que se desse a conhecer só por inteiro. E o avião reapareceu na pista, numa imagem distante, escura, estática, que salientava mais ainda a voz masculina da locução em off. A notícia do avião já pouco me importava, o mistério do avião era ofuscado pelo mistério do idioma que dava a notícia. Vinha eu escutando aqueles sons amalgamados, quando de repente detectei a palavra clandestina, Lufthansa. Sim, Lufthansa, com certeza o locutor a deixara escapar, a palavra alemã infiltrada na parede de palavras húngaras, a brecha que me permitiria destrinchar todo o vocabulário. Ao jornal sucedeu uma mesa-redonda cujos participantes pareciam não se entender, depois um documentário sobre o fundo do mar, com peixes transparentes, e às duas em ponto retornou minha amiga maquilada, que envelhecia de hora em hora. Meteorologia, Parlamento, bolsa de valores, estudantes na rua, shopping center, camponesa com repolho, meu avião, e já me arriscava a reproduzir alguns fonemas a partir de Lufthansa. Aí entrou na tela uma moça de xale vermelho e coque negro, ameaçou falar espanhol, zapeei no susto..." 
BUARQUE, Chico. Budapeste, Ed. Companhia das Letras, São Paulo. 2003.

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