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O IMORTAL
CAPÍTULO
PRIMEIRO
— Meu pai nasceu em 1600...
— Perdão, em 1800, naturalmente...
— Não, senhor, replicou o Dr. Leão,
de um modo grave e triste; foi em 1600.
Estupefação dos ouvintes, que eram
dois, o Coronel Bertioga, e o tabelião da vila, João Linhares. A vila era na
província fluminense; suponhamos Itaboraí ou Sapucaia. Quanto à data, não tenho
dúvida em dizer que foi no ano de 1855, uma noite de novembro, escura como
breu, quente como um forno, passante de nove horas. Tudo silêncio. O lugar em
que os três estavam era a varanda que dava para o terreiro. Um lampião de luz
frouxa, pendurado de um prego, sublinhava a escuridão exterior. De quando em quando, gania
um seco e áspero vento, mesclando-se ao
som monótono de uma cachoeira próxima. Tal era o quadro e o momento, quando o
Dr. Leão insistiu nas primeiras palavras da narrativa.
— Não, senhor; nasceu em 1600.
Médico homeopata, — a homeopatia
começava a entrar nos domínios da nossa civilização,
— este Dr. Leão chegara à vila, dez ou doze dias antes, provido de boas cartas de recomendação, pessoais e
políticas. Era um homem inteligente, de fino trato e coração benigno. A gente
da vila notou-lhe certa tristeza no gesto, algum retraimento nos hábitos, e até
uma tal ou qual sequidão de palavras, sem embargo da perfeita cortesia; mas
tudo foi atribuído ao acanho dos primeiros dias e às saudades da Corte. Contava
trinta anos, tinha um princípio de calva, olhar baço e mãos episcopais. Andava
propagando o novo sistema.
Os dois ouvintes continuavam
pasmados. A dúvida fora posta pelo dono da casa, o Coronel Bertioga, e o
tabelião ainda insistiu no caso, mostrando ao médico a impossibilidade de ter o
pai nascido em 1600. Duzentos e cinqüenta e cinco anos antes! dois séculos e
meio! Era impossível. Então, que idade tinha ele? e de que idade morreu o pai?
— Não tenho interesse em contar-lhes
a vida de meu pai, respondeu o Dr. Leão. Falaram-me no macróbio que mora nos fundos da
matriz; disse-lhes que, em negócio de
macróbios, conheci o que há mais espantoso no mundo, um homem imortal...
— Mas seu pai não morreu? disse o
coronel.
— Morreu.
— Logo, não era imortal, concluiu o
tabelião triunfante. Imortal se diz quando uma pessoa não morre, mas seu pai morreu.
— Querem ouvir-me?
— Homem, pode ser, observou o coronel
meio abalado. O melhor é ouvir a história. Só o que digo é que mais velho do
que o Capataz nunca vi ninguém. Está mesmo caindo de maduro. Seu pai devia
estar também muito velho...?
— Tão moço como eu. Mas para que me
fazem perguntas soltas? Para se espantarem cada vez mais, porque na verdade a
história de meu pai não é fácil de crer. Posso contá-la em poucos minutos.
Excitada a curiosidade, não foi
difícil impor-lhes silêncio. A família toda estava acomodada, os três eram sós na varanda, o dr.
Leão contou enfim a vida do pai, nos termos em que o leitor vai ver, se se der
o trabalho de ler o segundo e os outros capítulos.
CAPÍTULO
II
— Meu pai nasceu em 1600, na cidade
de Recife.
Aos vinte e cinco anos tomou o hábito
franciscano, por vontade de minha avó, que era profundamente religiosa. Tanto
ela como o marido eram pessoas de bom nascimento,
— “bom sangue”, como dizia meu pai, afetando a linguagem antiga.
Meu avô descendia da nobreza de
Espanha, e minha avó era de uma grande casa do Alentejo. Casaram-se ainda na
Europa, e, anos depois, por motivos que não vêm ao caso dizer, transportaram-se
ao Brasil, onde ficaram e morreram. Meu pai dizia que poucas mulheres tinha visto tão
bonitas como minha avó. E olhem que ele amou as mais esplêndidas mulheres do
mundo. Mas não antecipemos.
Tomou meu pai o hábito, no convento
de Iguaraçu, onde ficou até 1639, ano em que os holandeses, ainda uma vez,
assaltaram a povoação. Os frades deixaram precipitadamente o convento; meu pai,
mais remisso do que os outros (ou já com o intento de deitar o hábito às
urtigas), deixou-se ficar na cela, de maneira que os holandeses o foram achar no momento em que
recolhia alguns livros pios e objetos de
uso pessoal. Os holandeses não o trataram mal. Ele os regalou com o melhor da ucharia franciscana, onde a pobreza
é de regra. Sendo uso daqueles frades alternarem-se no serviço da cozinha, meu
pai entendia da arte, e esse talento foi mais um encanto ao aparecer do
inimigo.
No fim de duas semanas, o oficial
holandês ofereceu-lhe um salvo-conduto, para ir aonde lhe parecesse; mas meu
pai não o aceitou logo, querendo primeiro considerar se devia ficar com os
holandeses, e, à sombra deles desamparar a Ordem, ou se lhe era melhor buscar
vida por si mesmo. Adotou o segundo alvitre, não só por ter o espírito
aventureiro, curioso e audaz, como porque era patriota, e bom católico, apesar
da repugnância à vida monástica, e não quisera misturar-se com o herege
invasor. Aceitou o salvo-conduto e deixou Iguaraçu.
Não se lembrava ele, quando me contou
essas coisas, não se lembrava mais do número de dias que despendeu sozinho por
lugares ermos, fugindo de propósito ao povoado, não querendo ir a Olinda ou
Recife, onde estavam os holandeses. Comidas
as provisões que levava, ficou dependente de alguma caça silvestre e frutas. Deitara, com efeito, o hábito
às urtigas; vestia uns calções flamengos, que o oficial lhe dera, e uma camisola ou jaquetão
de couro. Para encurtar razões, foi ter a uma aldeia de gentio, que o recebeu
muito bem, com grandes carinhos e obséquios. Meu pai era talvez o mais
insinuante dos homens. Os índios ficaram embeiçados por ele, mormente o chefe,
um guerreiro velho, bravo e generoso, que chegou a dar-lhe a filha em
casamento. Já então minha avó era morta, e meu avô desterrado para a Holanda,
notícias que meu pai teve, casualmente, por um antigo servo da casa. Deixou-se
estar, pois, na aldeia, o gentio, até o ano de 1642, em que o guerreiro
faleceu. Este caso do falecimento é que é maravilhoso: peço-lhes a maior
atenção.
O coronel e o tabelião aguçaram os
ouvidos, enquanto o Dr. Leão extraía pausadamente
uma pitada e inseria-a no nariz, com a pachorra de quem está negaceando uma
coisa extraordinária.
CAPÍTULO
III
Uma noite, o chefe indígena, —
chamava-se Pirajuá, — foi à rede de meu pai, anunciou-lhe que tinha de morrer, pouco depois
de nascer o sol, e que ele estivesse pronto para acompanhá-lo fora, antes do
momento último. Meu pai ficou alvoroçado, não por lhe dar crédito, mas por
supô-lo delirante. Sobre amadrugada, o
sogro veio ter com ele.
— Vamos, disse-lhe.
— Não, agora não: estás fraco, muito
fraco...
— Vamos! repetiu o guerreiro.
E, à luz de uma fogueira expirante,
viu-lhe meu pai a expressão intimativa do rosto, e um certo ar diabólico, em
todo caso extraordinário, que o aterrou. Levantou-se, acompanhou-o na direção
de um córrego. Chegando ao córrego, seguiram pela margem esquerda, acima,
durante um tempo que meu pai calculou ter sido um quarto de hora. A madrugada
acentuava-se; a lua fugia diante dos primeiros
anúncios do sol. Contudo, e apesar da vida do sertão que meu pai levava desde alguns tempos, a aventura
assustava-o; seguia vigiando o sogro, com
receio de alguma traição. Pirajuá ia calado, com os olhos no chão, e a fronte carregada
de pensamentos, que podiam ser cruéis ou somente tristes. E andaram, andaram, até que Pirajuá disse:
— Aqui.
Estavam diante de três pedras,
dispostas em triângulo. Pirajuá sentou-se numa, meu pai noutra. Depois de
alguns minutos de descanso:
— Arreda aquela pedra, disse o
guerreiro, apontando para a terceira, que era a maior.
Meu pai levantou-se e foi à pedra.
Era pesada, resistiu ao primeiro impulso; mas meu pai teimou, aplicou todas as
forças, a pedra cedeu um pouco, depois mais, enfim foi removida do lugar.
— Cava o chão, disse o guerreiro.
Meu pai foi buscar uma lasca de pau,
uma taquara ou não sei que, e começou a cavar o chão. Já então estava curioso
de ver o que era. Tinha-lhe nascido uma idéia,
— algum tesouro enterrado, que o guerreiro, receoso de morrer, quisesse entregar-lhe. Cavou, cavou, cavou, até que
sentiu um objeto rijo; era um vaso tosco, talvez uma igaçaba. Não o tirou, não
chegou mesmo a arredar a terra em
volta dele. O guerreiro aproximou-se, desatou
o pedaço de couro de anta que lhe cobria a boca, meteu dentro o braço, e tirou
um boião. Este boião tinha a boca tapada com outro pedaço de couro.
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— Vem cá, disse o guerreiro.
Sentaram-se outra vez. O guerreiro
tinha o boião sobre os joelhos, tapado, misterioso,
aguçando a curiosidade de meu pai, que ardia por saber o que havia ali dentro.
— Pirajuá vai morrer, disse ele; vai
morrer para nunca mais. Pirajuá ama guerreiro branco, esposo de Maracujá, sua filha; e vai
mostrar um segredo como não há outro.
Meu pai estava trêmulo. O guerreiro
desatou lentamente o couro que tapava o boião. Destapado, olhou para dentro,
levantou-se, e veio mostrá-lo a meu pai. Era um líquido amarelado, de um cheiro
acre e singular.
— Quem bebe isto, um gole só, nunca
mais morre.
— Oh! bebe, bebe! exclamou meu pai
com vivacidade.
Foi um movimento de afeto, um ato
irrefletido de verdadeira amizade filial, porque só um instante depois é que
meu pai advertiu que não tinha, para crer na notícia que o sogro lhe dava, senão a palavra do mesmo
sogro, cuja razão supunha perturbada pela moléstia. Pirajuá sentiu o espontâneo
da palavra de meu pai, e agradeceu-lha; mas abanou a cabeça.
— Não, disse ele; Pirajuá não bebe,
Pirajuá quer morrer. Está cansado, viu muita lua, muita lua. Pirajuá quer
descansar na terra, está aborrecido. Mas Pirajuá quer deixar este segredo a
guerreiro branco; está aqui; foi feito por um velho pajé de longe, muito longe... Guerreiro branco bebe,
não morre mais.
Dizendo isto, tornou a tapar a boca
do boião, e foi metê-lo outra vez dentro da igaçaba. Meu pai fechou depois a
boca da mesma igaçaba, e repôs a pedra em cima. O primeiro clarão do sol vinha
apontando. Voltaram para casa depressa; antes mesmo de tomar a rede, Pirajuá
faleceu.
Meu pai não acreditou na virtude do
elixir. Era absurdo supor que um tal líquido pudesse abrir uma exceção na lei
da morte. Era naturalmente algum remédio, se não fosse algum veneno; e neste
caso, a mentira do índio estava explicada pela turvação mental que meu pai lhe
atribuiu. Mas, apesar de tudo, nada disse aos demais índios da aldeia, nem à
própria esposa. Calou-se; — nunca me revelou o motivo do silêncio: creio que
não podia ser outro senão o próprio influxo do mistério.
Tempos depois, adoeceu, e tão
gravemente que foi dado por perdido. O curandeiro do lugar anunciou a Maracujá
que ia ficar viúva. Meu pai não ouviu a notícia, mas leu-a em uma página de
lágrimas, no rosto da consorte, e sentiu em si mesmo que estava acabado. Era
forte, valoroso, capaz de encarar todos os perigos; não se aterrou, pois, com a
idéia de morrer, despediu-se dos vivos, fez algumas recomendações e preparou-se para a grande
viagem.
Alta noite, lembrou-se do elixir, e
perguntou a si mesmo se não era acertado tentá-lo. Já agora a morte era certa,
que perderia ele com a experiência? A ciência de um século não sabia tudo;
outro século vem e passa adiante. Quem sabe, dizia ele consigo, se os homens
não descobrirão um dia a imortalidade, e se o elixir científico não será esta
mesma droga selvática? O primeiro que curou a febre maligna fez um prodígio.
Tudo é incrível antes de divulgado. E, pensando assim, resolveu transportar-se
ao lugar da pedra, à margem do arroio; mas não quis ir de
dia, com medo de ser visto. De noite,
ergueu-se, e foi, trôpego, vacilante, batendo o queixo. Chegou à pedra, arredou-a, tirou o
boião, e bebeu metade do conteúdo. Depois sentou-se para descansar. Ou o
descanso, ou o remédio, alentou-o logo. Ele tornou a guardar o boião; daí a
meia hora estava outra vez na rede. Na seguinte
manhã estava bom...
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— Bom de todo? perguntou o tabelião
João Linhares, interrompendo o narrador.
— De todo.
— Era algum remédio para febre...
— Foi isto mesmo o que ele pensou,
quando se viu bom. Era algum remédio para febre e outras doenças; e nisto
ficou; mas, apesar do efeito da droga, não a descobriu a ninguém. Entretanto,
os anos passaram, sem que meu pai envelhecesse;
qual era no tempo da moléstia, tal ficou. Nenhuma ruga, nenhum cabelo branco. Moço, perpetuamente moço. A
vida do mato começara a aborrecê-lo; ficara ali por gratidão ao sogro; as
saudades da civilização vieram tomá-lo. Um dia, a aldeia foi invadida por uma
horda de índios de outra, não se sabe por que motivo, nem importa ao nosso
caso. Na luta pereceram muitos, meu pai foi ferido, e fugiu para o mato. No dia seguinte
veio à aldeia, achou a mulher morta. As feridas eram profundas; curou-as com o
emprego de remédios usuais; e restabeleceu-se dentro de poucos dias. Mas os
sucessos confirmaram-no no propósito de deixar a vida semi-selvagem e tornar à
vida civilizada e cristã. Muitos anos se tinham passado depois da fuga do
convento de Iguaraçu; ninguém mais o reconheceria. Um dia de manhã deixou a
aldeia, com o pretexto de ir caçar; foi primeiro ao arroio, desviou a pedra,
abriu a igaçaba, tirou o boião, onde deixara um resto do elixir. A idéia dele era fazer
analisar a droga na Europa, ou mesmo em Olinda ou no Recife, ou na Bahia, por
algum entendido em coisas de química e farmácia. Ao mesmo tempo não podia
furtar-se a um sentimento de gratidão; devia àquele remédio a saúde. Com o
boião ao lado, a mocidade nas pernas e a resolução no peito, saiu dali, caminho
de Olinda e da eternidade.
CAPÍTULO
IV
— Não posso demorar-me em pormenores,
disse o Dr. Leão aceitando o café que o coronel
mandara trazer. São quase dez horas...
— Que tem? perguntou o coronel. A
noite é nossa; e, para o que temos de fazer amanhã, podemos dormir quando bem
nos parecer. Eu por mim não tenho sono. E você, Sr. João Linhares?
— Nem um pingo, respondeu o tabelião.
E teimou com o Dr. Leão para contar
tudo, acrescentando que nunca ouvira nada tão extraordinário. Note-se que o tabelião
presumia ser lido em histórias antigas, e passava na vila por um dos homens
mais ilustrados do Império; não obstante, estava pasmado. Ele contou ali mesmo,
entre dois goles de café, o caso de Matusalém,
que viveu novecentos e sessenta e nove anos, e o de Lameque que morreu com
setecentos e setenta e sete; mas, explicou logo, porque era um espírito forte,
que esses e outros exemplos da cronologia hebraica não tinham fundamento científico...
— Vamos, vamos ver agora o que
aconteceu a seu pai, interrompeu o coronel.
O vento, de esfalfado, morrera; e a
chuva começava a rufar nas folhas das árvores, a princípio com intermitências,
depois mais contínua e basta. A noite refrescou um pouco. O Dr. Leão continuou
a narração, e, apesar de dizer que não
podia demorar-se nos pormenores, contou-os com
tanta miudeza, que não me atrevo a pô-los tais quais nestas páginas; seria
fastidioso. O melhor é resumi-lo.
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Rui de Leão, ou antes Rui Garcia de
Meireles e Castro Azevedo de Leão, que assim se chamava o pai do médico, pouco
tempo se demorou em Pernambuco. Um ano depois, em 1654, cessava o domínio
holandês. Rui de Leão assistiu às alegrias da vitória, e passou-se ao reino,
onde casou com uma senhora nobre de Lisboa. Teve um filho; e perdeu o filho e a
mulher no mesmo mês de março de 1661.
A dor que então padeceu foi profunda; para distrair-se
visitou a França e a Holanda. Mas na Holanda,
ou por motivo de uns amores secretos, ou por ódio de alguns judeus descendentes ou naturais de Portugal, com quem
entreteve relações comerciais na Haia, ou enfim por outros motivos
desconhecidos, Rui de Leão não pôde viver tranqüilo muito tempo; foi preso e
conduzido para a Alemanha, de onde passou à Hungria, a algumas cidades
italianas, à França, e finalmente à Inglaterra. Na Inglaterra estudou o inglês
profundamente; e, como sabia o latim, aprendido no convento, o hebraico, que
lhe ensinara na Haia o famoso Spinoza, de quem foi amigo, e que talvez deu
causa ao ódio que os outros judeus lhe criaram; — o francês e o italiano, parte
do alemão e do húngaro, tornou-se em Londres objeto de verdadeira curiosidade e
veneração. Era buscado, consultado, ouvido, não só por pessoas do vulgo ou
idiotas, como por letrados, políticos e personagens da Corte.
Convém dizer que em todos os países
por onde andara tinha ele exercido os mais contrários ofícios: soldado, advogado,
sacristão, mestre de dança, comerciante e livreiro. Chegou a ser agente secreto
da Áustria, guarda pontifício e armador de navios. Era ativo, engenhoso, mas
pouco persistente, a julgar pela variedade das coisas que empreendeu; ele,
porém, dizia que não, que a sorte é que sempre lhe foi adversa. Em Londres,
onde o vemos agora, limitou-se ao mister de letrado e gamenho; mas não tardou que voltasse a Haia,
onde o esperavam alguns dos amores
velhos, e não poucos recentes.
Que o amor, força é dizê-lo, foi uma
das causas da vida agitada e turbulenta do nosso herói. Ele era pessoalmente um homem
galhardo, insinuante, dotado de um olhar
cheio de força e magia. Segundo ele mesmo contou ao filho, deixou muito longe o algarismo dom-juanesco das mille e tre. Não podia dizer o número exato das
mulheres a quem amara, em todas as latitudes e línguas, desde a selvagem Maracujá
de Pernambuco, até à bela cipriota ou à fidalga dos salões de Paris e Londres;
mas calculava em não menos de cinco mil mulheres. Imagina-se facilmente que uma tal multidão devia conter
todos os gêneros possíveis da beleza feminil: loiras, morenas, pálidas,
coradas, altas, meãs, baixinhas, magras ou cheias, ardentes ou lânguidas,
ambiciosas, devotas, lascivas, poéticas, prosaicas, inteligentes, estúpidas; — sim, também
estúpidas, e era opinião dele que a estupidez das mulheres tinha o sexo
feminino, era graciosa, ao contrário da dos homens, que participava da aspereza
viril.
— Há casos, dizia ele, em que uma
mulher estúpida tem o seu lugar.
Na Haia, entre os novos amores,
deparou-se-lhe um que o prendeu por longo tempo: lady Emma
Sterling, senhora inglesa, ou antes escocesa, pois descendia de uma família de
Dublin. Era formosa, resoluta, e audaz; — tão audaz que chegou a propor ao
amante uma expedição a Pernambuco para conquistar a capitania, e aclamarem-se
reis do novo Estado. Tinha dinheiro, podia levantar muito mais, chegou mesmo a sondar alguns armadores e
comerciantes, e antigos militares que ardiam por uma desforra. Rui de Leão
ficou aterrado com a proposta da amante, e não lhe deu crédito; mas lady Ema insistiu e mostrou-se tão de
rocha, que ele reconheceu enfim achar-se diante de uma ambiciosa verdadeira.
Era, todavia, homem de senso; viu que a empresa, por mais bem organizada que
fosse, não passaria de tentativa desgraçada; disse-lho a ela; mostrou-lhe que,
se a Holanda inteira tinha recuado, não era fácil que um particular chegasse a
obter ali domínio seguro, nem ainda instantâneo. Lady Ema abriu
mão do plano, mas não perdeu a
idéia de o exalçar a alguma grande situação.
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— Tu serás rei ou duque...
— Ou cardeal, acrescentava ele rindo.
— Por que não cardeal?
Lady Ema fez com que Rui de Leão entrasse daí a pouco na conspiração
que deu em resultado a invasão da Inglaterra, a guerra civil, e a morte enfim
dos principais cabos da rebelião. Vencida esta, lady Ema não
deu por vencida. Ocorreu-lhe então uma idéia espantosa. Rui de Leão inculcava
ser o próprio pai do duque de Monmouth, suposto filho natural de Carlos II, e
caudilho principal dos rebeldes. A verdade é que eram parecidos como duas gotas
d’água. Outra verdade é que lady
Ema, por ocasião da guerra civil, tinha o plano secreto de
fazer matar o duque, se ele triunfasse, e substituí-lo pelo amante, que assim
subiria ao trono de Inglaterra. O
pernambucano, escusado é dizê-lo, não soube de semelhante aleivosia, nem lhe daria
o seu assentimento. Entrou na rebelião, viu-a perecer ao sangue e no suplício,
e tratou de esconder-se. Ema acompanhou-o; e, como a esperança do cetro não lhe
saía do coração, passado algum tempo fez correr que o duque não morrera, mas
sim um amigo tão parecido com ele, e tão dedicado, que o substituiu no
suplício.
— O duque está vivo, e dentro de
pouco aparecerá ao nobre povo da Grã-Bretanha, sussurrava ela aos ouvidos.
Quando Rui de Leão efetivamente
apareceu, a estupefação foi grande, o entusiasmo reviveu, o amor deu alma a uma
causa, que o carrasco supunha ter acabado na Torre de Londres. Donativos,
presentes, armas, defensores, tudo veio às mãos do audaz pernambucano, aclamado
rei, e rodeado logo de um troço de varões resolutos a morrer pela mesma causa.
— Meu filho, — disse ele, século e
meio depois, ao médico homeopata, — dependeu de muito pouco não teres nascido
príncipe de Gales... Cheguei a dominar
cidades e vilas, expedi leis, nomeei ministros, e, ainda assim, resisti a duas
ou três sedições militares que pediam a queda dos dois últimos gabinetes. Tenho
para mim que as dissensões internas ajudaram as forças legais, e devo-lhes a
minha derrota. Ao cabo, não me zanguei com elas; a luta fatigara-me; não minto
dizendo que o dia da minha captura foi para mim de alívio. Tinha visto, além da
primeira, duas guerras civis, uma dentro da outra, uma cruel, outra ridícula, ambas
insensatas. Por outro lado, vivera muito, e uma vez que me não executassem, que me deixassem preso ou me
exilassem para os confins da terra, não
pedia nada mais aos homens, ao menos durante alguns séculos... Fui preso, julgado
e condenado à morte. Dos meus auxiliares não poucos negaram tudo; creio mesmo
que um dos principais morreu na Câmara dos Lords. Tamanha ingratidão
foi um princípio de suplício. Ema, não; essa nobre senhora não me abandonou;
foi presa, condenada, e perdoada; mas não me abandonou. Na véspera de minha
execução, veio ter comigo, e passamos juntos as últimas horas. Disse-lhe que não me esquecesse, dei-lhe uma
trança de cabelos, pedi-lhe que perdoasse ao carrasco... Ema prorrompeu em
soluços; os guardas vieram buscá-la. Ficando só, recapitulei a minha vida,
desde Iguaraçu até a Torre de Londres. Estávamos então em 1686; tinha eu
oitenta e seis anos, sem parecer mais de quarenta. A aparência era a da eterna
juventude; mas o carrasco ia destruí-la num instante. Não valia a pena ter
bebido metade do elixir e guardado comigo o misterioso boião, para acabar
tragicamente no cepo do cadafalso... Tais foram as minhas idéias naquela noite.
De manhã preparei-me para a morte. Veio o padre, vieram os soldados, e o carrasco.
Obedeci maquinalmente. Caminhamos todos, subi ao cadafalso, não fiz discurso;
inclinei o pescoço sobre o cepo, o carrasco deixou cair a arma, senti uma dor
penetrante, uma angústia enorme, como que a parada súbita do coração; mas essa sensação
foi tão grande como rápida; no
instante seguinte tornara ao estado natural.
Tinha no pescoço algum sangue, mas pouco e quase seco. O carrasco recuou, o
povo bramiu que me matassem. Inclinaram-me a cabeça, e o carrasco, fazendo
apelo a todos os seus músculos e princípios, descarregou outro golpe, e maior,
se é possível, capaz de abrir-me ao mesmo tempo a sepultura, como já se disse
de um valente. A minha sensação foi igual
à primeira na intensidade e na brevidade; reergui a cabeça. Nem o magistrado
nem o padre consentiram que se desse outro golpe. O povo abalou-se, uns chamaram-me santo, outros diabo, e ambas
essas opiniões eram defendidas nas tabernas à força de punho e de aguardente.
Diabo ou santo, fui presente aos médicos
da corte. Estes ouviram o depoimento do magistrado, do padre, do carrasco, de
alguns soldados, e concluíram que, uma vez dado o golpe, os tecidos do pescoço
ligavam-se outra vez rapidamente, e assim os mesmos ossos, e não chegavam a
explicar um tal fenômeno. Pela minha parte, em vez de contar o caso do elixir,
calei-me; preferi aproveitar as vantagens do mistério. Sim, meu filho; não
imaginas a impressão de toda a Inglaterra, os bilhetes amorosos que recebi das
mais finas duquesas, os versos, as flores, os presentes, as metáforas. Um poeta chamou-me Anteu. Um jovem protestante
demonstrou-me que eu era o mesmo Cristo.
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CAPÍTULO
V
O narrador continuou:
— Já vêem, pelo que lhes contei, que
não acabaria hoje nem em toda esta semana, se quisesse referir miudamente a vida
inteira de meu pai. Algum dia o farei, mas por escrito, e cuido que a obra dará
cinco volumes, sem contar os documentos...
— Que documentos? perguntou o
tabelião.
— Os muitos documentos comprobatórios
que possuo, títulos, cartas, traslados de sentenças, de escrituras, cópias de
estatísticas... Por exemplo, tenho uma certidão do recenseamento de um certo
bairro de Gênova, onde meu pai morreu em 1742; traz o nome dele, com declaração
do lugar em que nasceu...
— E com a verdadeira idade? perguntou
o coronel.
— Não. Meu pai andou sempre entre os
quarenta e os cinqüenta. Chegando aos cinqüenta,
cinqüenta e poucos, voltava para trás; — e era-lhe fácil fazer isto, porque não
esquentava lugar; vivia cinco, oito, dez, doze anos numa cidade, e passava a
outra... Pois tenho muitos documentos que juntarei, entre outros, o testamento
de lady Ema, que morreu pouco depois da execução gorada de meu pai. Meu
pai dizia-me que entre as muitas saudades que a vida lhe ia deixando, lady
Ema era das
mais fortes e profundas. Nunca
viu mulher mais
sublime, nem amor mais constante, nem dedicação mais cega.
E a morte confirmou a vida, porque o herdeiro de lady Ema foi meu pai. Infelizmente, a herança teve outros reclamantes, e o testamento entrou em
processo. Meu pai, não podendo residir em Inglaterra, concordou na proposta de
um amigo providencial que veio a Lisboa dizer-lhe que tudo estava perdido;
quando muito poderia salvar um restozinho de nada, e ofereceu-lhe por esse direito
problemático uns dez mil cruzados. Meu pai aceitou-os; mas, tão caipora que o testamento
foi aprovado, e a herança passou às mãos do comprador...
— E seu pai ficou pobre...
— Com os dez mil cruzados, e pouco
mais que apurou. Teve então idéia de meter-se no negócio de escravos; obteve
privilégio, armou um navio, e transportou africanos para o Brasil. Foi a parte
da vida que mais lhe custou; mas afinal
acostumou-se às tristes obrigações de um navio
negreiro. Acostumou-se, e enfarou-se, que era outro fenômeno na vida dele.
Enfarava-se dos ofícios. As longas solidões do mar alargaram-lhe o vazio
interior. Um dia refletiu, e perguntou a
si mesmo, se chegaria a habituar-se tanto à navegação, que tivesse de varrer o oceano,
por todos os séculos dos séculos. Criou medo; e compreendeu que o melhor modo
de atravessar a eternidade era variá-la...
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— Em que ano ia ele?
— Em 1694; fins de 1694.
— Veja só! Tinha então noventa e
quatro anos, não era? Naturalmente, moço...
— Tão moço que casou daí a dois anos,
na Bahia, com uma bela senhora que...
— Diga.
— Digo, sim; porque ele mesmo me
contou a história. Uma senhora que amou a outro. E que outro! Imaginem que meu
pai, em 1695, entrou na conquista da famosa
república dos Palmares. Bateu-se como um bravo, e perdeu um amigo, um amigo íntimo, crivado de balas, pelado...
— Pelado?
— É verdade; os negros defendiam-se
também com água fervendo, e este amigo recebeu
um pote cheio; ficou uma chaga. Meu pai contava-me esse episódio com dor, e até
com remorso, porque, no meio da refrega, teve de pisar o pobre companheiro; parece até que ele expirou quando
meu pai lhe metia as botas na cara...
O tabelião fez uma careta; e o
coronel, para disfarçar o horror, perguntou o que tinha a conquista dos
Palmares com a mulher que...
— Tem tudo, continuou o médico. Meu
pai, ao tempo que via morrer um amigo, salvara a vida de um oficial, recebendo
ele mesmo uma flecha no peito. O caso foi assim. Um dos negros, depois de
derrubar dois soldados, envergou o arco sobre a pessoa do oficial, que era um
rapaz valente e simpático, órfão de pai, tendo deixado a mãe em Olinda... Meu
pai compreendeu que a flecha não lhe faria mal a ele, e então, de um salto,
interpôs-se. O golpe feriu-o no peito; ele caiu. O oficial, Damião... Damião de tal. Não digo o nome todo,
porque ele tem alguns descendentes para as bandas de Minas. Damião basta.
Damião passou a noite ao pé da cama de
meu pai, agradecido, dedicado, louvando-lhe uma ação tão sublime. E chorava.
Não podia suportar a idéia de ver morrer o homem que lhe salvara a vida por um
modo tão raro. Meu pai sarou depressa, com pasmo de todos. A pobre mãe do
oficial quis beijar-lhe as mãos: — “Basta-me um prêmio, disse ele; a sua amizade e a do seu filho”. O
caso encheu de pasmo Olinda inteira. Não
se falava em outra coisa; e daí a algumas semanas a admiração pública trabalhava
em fazer uma lenda. O sacrifício, como vêem, era nenhum, pois meu pai não podia morrer; mas o povo, que não
sabia disso, buscou uma causa ao sacrifício, uma causa tão grande como
ele, e descobriu que o Damião devia ser filho de meu pai, e naturalmente filho
adúltero. Investigaram o passado da viúva; acharam alguns recantos que se
perdiam na obscuridade. O rosto de meu pai entrou a parecer conhecido de
alguns; não faltou mesmo quem afirmasse ter ido a uma merenda, vinte anos
antes, em casa da viúva, que era então casada, e visto aí meu pai. Todas estas
patranhas aborreceram tanto a meu pai, que ele determinou passar à Bahia, onde
casou...
— Com a tal senhora?
— Justamente... Casou com D. Helena,
bela como o sol, dizia ele. Um ano depois
morria em Olinda a viúva, e o Damião vinha à
Bahia trazer a meu pai uma madeixa dos
cabelos da mãe, e um colar que a moribunda pedia para ser usado pela mulher
dele. D. Helena soube do episódio da flecha, e agradeceu a lembrança da morta.
Damião quis voltar para Olinda; meu pai disse-lhe que não, que fosse no ano
seguinte. Damião ficou. Três meses depois uma paixão desordenada... Meu pai
soube da aleivosia de ambos, por um comensal da casa. Quis matá-los; mas o mesmo
que os denunciou avisou-os do perigo, e eles puderam evitar a morte. Eu pai voltou o punhal contra si, e enterrou-o
no coração.
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“Filho, dizia-me ele, contando o
episódio; dei seis golpes, cada um dos quais bastava para matar um homem, e não
morri.” Desesperado saiu de casa, e atirou-se ao mar. O mar restituiu-o à
terra. A morte não podia aceitá-lo: ele pertencia à vida por todos os séculos.
Não teve outro recurso mais do que fugir; veio para o Sul, onde alguns anos
depois, no princípio do século passado, podemos achá-lo na descoberta das
minas. Era um modo de afogar o desespero, que era grande, pois amara muito a
mulher, como um louco...
— E ela?
— São contos largos, e não me sobra
tempo. Ela veio ao Rio de Janeiro, depois das duas invasões francesas; creio que
em 1713. Já então meu pai enriquecera com as minas, e residia na cidade
fluminense, benquisto, com idéias até de ser nomeado governador. D. Helena
apareceu-lhe, acompanhada da mãe e de um tio. Mãe e tio vieram dizer-lhe que era tempo de
acabar com a situação em que meu pai tinha colocado a mulher. A calúnia pesara
longamente sobre a vida da pobre senhora. Os cabelos iam-lhe embranquecendo:
não era só a idade que chegava, eram principalmente os desgostos, as lágrimas.
Mostraram-lhe uma carta escrita pelo comensal denunciante, pedindo perdão a D.
Helena da calúnia que lhe levantara e confessando que o fizera levado de uma
criminosa paixão. Meu pai era uma boa alma; aceitou a mulher, a sogra e o tio.
Os anos fizeram o seu ofício; todos três envelheceram, menos meu pai. Helena
ficou com a cabeça toda branca; a mãe e o tio voavam para a decrepitude; e
nenhum deles tirava os olhos de meu pai, espreitando as cãs que não vinham, e
as rugas ausentes. Um dia meu pai ouviu-lhes dizer que ele devia ter parte com
o diabo. Tão forte! E acrescentava o tio: “De que serve o testamento, se temos
de ir antes?” Duas semanas depois morria o tio; a sogra acabou pateta, daí a um
ano. Restava a mulher, que pouco mais durou.
— O que me parece, aventurou o
coronel, é que eles vieram ao cheiro dos cobres...
— Decerto.
— ... e que a tal D. Helena (Deus lhe
perdoe!) não estava tão inocente como dizia. É verdade que a carta do denunciante...
— O denunciante foi pago para
escrever a carta, explicou o Dr. Leão; meu pai soube disso, depois da morte da
mulher, ao passar pela Bahia... Meia-noite! Vamos dormir; é tarde; amanhã direi
o resto.
— Não, não, agora mesmo.
— Mas, senhores... Só se for muito
por alto.
— Seja por alto.
O doutor levantou-se e foi espiar a
noite, estendendo o braço para fora, e recebendo alguns pingos de chuva na mão.
Depois voltou-se e deu com os dois olhando
um para o outro, interrogativos. Fez lentamente um cigarro, acendeu-o, e, puxadas umas três fumaças, concluiu a
singular história.
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CAPÍTULO
VI
— Meu pai deixou pouco depois o
Brasil, foi a Lisboa, e dali passou-se à Índia, onde se demorou mais de cinco anos, e donde
voltou a Portugal, com alguns estudos feitos acerca daquela parte do mundo.
Deu-lhes a última lima, e fê-los imprimir, tão a tempo, que o governo mandou-o
chamar para entregar-lhe o governo de Goa. Um candidato ao cargo, logo que
soube do caso, pôs em ação todos os meios possíveis e impossíveis. Empenhos,
intrigas, maledicência, tudo lhe servia de arma. Chegou a obter, por dinheiro,
que um dos melhores latinistas da península, homem sem escrúpulos, forjasse um
texto latino da obra de meu pai, e o atribuísse a um frade agostinho, morto em
Adém. E a tacha de plagiário acabou de eliminar meu pai, que perdeu o governo
de Goa, o qual passou às mãos do outro; perdendo também, o que é mais, toda a
consideração pessoal. Ele escreveu uma longa justificação, mandou cartas para a
Índia, cujas respostas não esperou, porque no meio desses trabalhos,
aborreceu-se tanto, que entendeu melhor deixar tudo, e sair de Lisboa. Esta
geração passa, disse ele, e eu fico. Voltarei cá daqui a um século, ou dois.
— Veja isto, interrompeu o tabelião,
parece coisa de caçoada! Voltar daí a um século — ou dois, como se fosse um ou dois
meses. Que diz, “seu” coronel?
— Ah! eu quisera ser esse homem! É
verdade que ele não voltou um século depois... Ou voltou?
— Ouça-me. Saiu dali para Madri, onde
esteve de amores com duas fidalgas, uma delas viúva e bonita como o sol, a
outra casada, menos bela, porém amorosa e terna como uma pomba-rola. O marido
desta chegou a descobrir o caso, e não quis bater-se com meu pai, que não era
nobre; mas a paixão do ciúme e da honra levou esse homem ofendido à prática de
uma aleivosia, igual à outra: mandou assassinar meu pai; os esbirros deram-lhe
três punhaladas e quinze dias de cama. Restabelecido, deram-lhe um tiro; foi o
mesmo que nada. Então, o marido achou um meio de eliminar meu pai; tinha visto
com ele alguns objetos, notas, e desenhos de coisas religiosas da Índia, e
denunciou-o ao Santo Ofício, como dado a práticas supersticiosas. O Santo
Ofício, que não era omisso nem frouxo nos seus deveres, tomou conta dele, e
condenou-o a cárcere perpétuo. Meu pai ficou aterrado. Na verdade, a prisão
perpétua para ele devia ser a coisa mais horrorosa do mundo. Prometeu, o mesmo
Prometeu foi desencadeado... Não me interrompa, Sr. Linhares, depois direi quem foi esse
Prometeu. Mas, repito: ele foi desencadeado,
enquanto que meu pai estava nas mãos do Santo Ofício, sem esperança. Por outro
lado, ele refletiu consigo que, se era eterno, não o era o Santo Ofício. O
Santo Ofício há de acabar um dia, e os seus cárceres, e então ficarei livre.
Depois, pensou também que, desde que passasse um certo número de anos, sem
envelhecer nem morrer, tornar-se-ia um caso tão extraordinário, que o mesmo Santo Ofício lhe abriria as
portas. Finalmente, cedeu a outra consideração. “Meu filho, disse-me ele, eu
tinha padecido tanto naqueles longos anos de vida, tinha visto tanta paixão má,
tanta miséria, tanta calamidade, que agradeci a Deus, o cárcere e uma longa
prisão; e disse comigo que o Santo Ofício não era tão mau, pois que me retirava
por algumas dezenas de anos, talvez um século, do espetáculo exterior...”
— Ora essa!
— Coitado! Não contava com a outra
fidalga, a viúva, que pôs em campo todos os recursos de que podia dispor, e alcançou-lhe a
fuga daí a poucos meses. Saíram ambos de Espanha, meteram-se em França, e
passaram à Itália, onde meu pai ficou
residindo por longos anos. A viúva morreu-lhe nos braços; e, salvo uma paixão
que teve em Florença, por um rapaz nobre, com quem fugiu e esteve seis
meses, foi sempre fiel ao amante. Repito,
morreu-lhe nos braços, e ele padeceu muito, chorou muito, chegou a querer
morrer também. Contou-me os atos de desespero
que praticou; porque, na verdade, amara muito a formosa madrilena. Desesperado, meteu-se a caminho, e viajou por
Hungria, Dalmácia, Valáquia; esteve cinco anos em Constantinopla; estudou o
turco a fundo, e depois o árabe. Já lhes disse que ele sabia muitas línguas;
lembra-me de o ver traduzir o padre-nosso em cinqüenta idiomas diversos. Sabia
muito. E ciências! Meu pai sabia uma infinidade de coisas: filosofia,
jurisprudência, teologia, arqueologia, química, física, matemáticas,
astronomia, botânica; sabia arquitetura, pintura, música. Sabia o diabo.
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— Na verdade...
— Muito, sabia muito. E fez mais do
que estudar o turco; adotou o maometanismo. Mas deixou-o daí a pouco. Enfim,
aborreceu-se dos turcos: era a sina dele aborrecer-se facilmente de uma coisa
ou de um ofício. Saiu de Constantinopla, visitou outras partes da Europa, e
finalmente passou-se a Inglaterra aonde não fora desde longos anos.
Aconteceu-lhe aí o que lhe acontecia em toda a parte: achou todas as caras
novas; e essa troca de caras no meio de uma cidade, que era a mesma deixada por
ele, dava-lhe a impressão de uma peça teatral,
em que o cenário não muda, e só mudam os atores. Essa impressão, que a princípio
foi só de pasmo, passou a ser de tédio; mas agora, em Londres, foi outra coisa
pior, porque despertou nele uma idéia, que nunca tivera, uma idéia extraordinária,
pavorosa...
— Que foi?
— A idéia de ficar doido um dia.
Imaginem: um doido eterno. A comoção que esta idéia lhe dava foi tal que quase
enlouqueceu ali mesmo. Então lembrou-se de outra coisa. Como tinha o boião do
elixir consigo, lembrou de dar o resto a alguma senhora ou homem, e ficariam os dois imortais.
Sempre era uma companhia. Mas, como tinha tempo diante de si, não precipitou
nada; achou melhor esperar pessoa cabal. O certo é que essa idéia o
tranqüilizou... Se lhe contasse as aventuras que ele teve outra vez na
Inglaterra, e depois em França, e no Brasil, onde voltou no vice-reinado do Conde de Resende, não acabava
mais, e o tempo urge, além do que o Sr.
Coronel está com sono...
— Qual sono!
— Pelo menos está cansado.
— Nem isso. Se eu nunca ouvi uma
coisa que me interessasse tanto. Vamos; conte essas aventuras.
— Não; direi somente que ele achou-se
em França por ocasião da revolução de 1789, assistiu a tudo, à queda e morte do
rei, dos girondinos, de Danton, de Robespierre; morou algum tempo com Filinto
Elísio, o poeta, sabem? Morou com ele em Paris; foi um dos elegantes do
Diretório, deu-se com o primeiro Cônsul... Quis até naturalizar-se e seguir as armas e a política;
podia ter sido um dos marechais do império, e pode ser até que não tivesse
havido Waterloo. Mas ficou tão enjoado de algumas apostasias políticas, e tão
indignado, que recusou a tempo. Em 1808 achamo-lo em viagem com a corte real
para o Rio de Janeiro. Em 1822 saudou a independência; e fez parte da
Constituinte; trabalhou no 7 de Abril;
festejou a maioridade; há dois anos era deputado.
Neste ponto os dois ouvintes
redobraram de atenção. Compreenderam que iam chegar ao desenlace, e não
quiseram perder uma sílaba daquela parte da narração, em que iam saber da morte do
imortal. Pela sua parte, o Dr. Leão parara um pouco; podia ser uma lembrança
dolorosa; podia também ser um recurso
para aguçar mais o apetite. O tabelião ainda lhe perguntou, se o pai não tinha dado a alguém o resto do elixir, como
queria; mas o narrador não lhe respondeu
nada. Olhava para dentro; enfim, terminou deste modo:
— A alma de meu pai chegara a um grau
de profunda melancolia. Nada o contentava; nem o sabor da glória, nem o sabor
do perigo, nem o do amor. Tinha então
perdido minha mãe, e vivíamos juntos, como dois solteirões. A política perdera
todos os encantos aos olhos dum homem que pleiteara um trono, e um dos
primeiros do universo. Vegetava consigo; triste, impaciente, enjoado. Nas horas
mais alegres fazia projetos para o século XX e XXIV, porque já então me desvendara
todo o segredo da vida dele. Não acreditei, confesso; e imaginei que fosse
alguma perturbação mental; mas as provas foram completas, e demais a observação
mostrou-me que ele estava em plena saúde. Só o espírito, como digo, parecia
abatido e desencantado. Um dia, dizendo-lhe eu que não compreendia tamanha
tristeza, quando eu daria a alma ao diabo para ter a vida eterna, meu pai sorriu com uma tal expressão de superioridade,
que me enterrou cem palmos abaixo do chão. Depois, respondeu que eu não sabia o
que dizia; que a vida eterna afigurava-se-me excelente, justamente porque a
minha era limitada e curta; em verdade, era o mais atroz dos suplícios. Tinha
visto morrer todas as suas afeições; devia perder-me um dia, e todos os mais
filhos que tivesse pelos séculos adiante. Outras afeições e
não poucas o tinham enganado; e umas e outras, boas e más, sinceras e pérfidas,
era-lhe forçoso repeti-las, sem trégua, sem um respiro ao menos, porquanto, a
experiência não lhe podia valer contra a necessidade de agarrar-se a alguma
coisa, naquela passagem rápida dos homens e das gerações. Era uma necessidade
da vida eterna; sem ela, cairia na demência. Tinha provado tudo, esgotado tudo; agora era a
repetição, a monotonia, sem esperanças,
sem nada. Tinha de relatar a outros filhos, vinte ou trinta séculos mais tarde,
o que me estava agora dizendo; e depois a outros, e outros, e outros, um não
acabar mais nunca. Tinha de estudar novas línguas, como faria Aníbal, se vivesse
até hoje: e para quê? para ouvir os mesmos sentimentos, as mesmas paixões... E
dizia-me tudo isso, verdadeiramente abatido. Não parece esquisito? Enfim um
dia, como eu fizesse a alguns amigos uma exposição do sistema homeopático, vi reluzir nos olhos de meu pai
um fogo desusado e extraordinário. Não me disse nada. De noite, vieram
chamar-me ao quarto dele. Achei-o moribundo; disse-me então, com a língua
trôpega, que o princípio homeopático fora para ele a salvação. Similia similibus curantur. Bebera o resto
do elixir, e assim como a primeira metade lhe dera a vida, a segunda dava-lhe a
morte. E, dito isto, expirou.
O coronel e o tabelião ficaram algum
tempo calados, sem saber que pensassem da famosa história; mas a seriedade do
médico era tão profunda, que não havia duvidar. Creram no caso, e creram também
definitivamente na homeopatia. Narrada a
história a outras pessoas, não faltou quem supusesse que o médico era louco;
outros atribuíram-lhe o intuito de tirar ao coronel e ao tabelião o desgosto manifestado
por ambos de não poderem viver eternamente, mostrando-lhes que a morte é,
enfim, um benefício. Mas a suspeita de que ele apenas quis propagar a homeopatia
entrou em alguns cérebros, e não era inverossímil. Dou este problema aos estudiosos. Tal é o caso extraordinário,
que há anos, com outro nome, e por outras palavras, contei a este bom povo, que
provavelmente já os esqueceu a ambos.
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Nota:
Texto-fonte:
Texto-fonte: Obra Completa, Machado de Assis, vol. II, Rio de Janeiro:
Nova Aguilar, 1994. Publicado
originalmente em A Estação, de 15/07 a 15/09/1882.