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SÓ
Bonifácio, depois de fechar a porta,
guardou a chave, atravessou o jardim e meteu-se em casa. Estava só, finalmente
só. A frente da casa dava para uma rua pouco freqüentada e quase sem moradores.
A um dos lados da chácara corria outra rua. Creio que tudo isso era para os
lados de Andaraí.
Um grande escritor, Edgar Poe,
relata, em um de seus admiráveis contos, a corrida noturna de um desconhecido
pelas ruas de Londres, à medida que se despovoam, com o visível intento de
nunca ficar só. "Esse homem, conclui ele, é o tipo e o gênio do crime
profundo; é o homem das multidões." Bonifácio não era capaz de crimes, nem ia agora atrás de lugares
povoados, tanto que vinha recolher-se a uma casa vazia. Posto que os seus
quarenta e cinco anos não fossem tais que tornassem inverossímil uma fantasia
de mulher, não era amor que o trazia à reclusão. Vamos à verdade: ele queria
descansar da companhia dos outros. Quem lhe meteu isso na cabeça, — sem o
querer nem saber, — foi um esquisitão desse tempo, dizem que filósofo, um tal
Tobias que morava para os lados do Jardim Botânico. Filósofo ou
não, era homem
de cara seca e
comprida, nariz grande e óculos de
tartaruga. Paulista de nascimento, estudara em Coimbra, no tempo do rei e
vivera muitos anos na Europa, gastando o que possuía, até que, não tendo mais
que alguns restos, arrepiou carreira. Veio para o Rio de Janeiro, com o plano
de passar a S. Paulo; mas foi ficando e aqui morreu. Costumava ele desaparecer
da cidade durante um ou dois meses; metia-se em casa, com o único preto que
possuía, e a quem dava ordem de lhe não dizer nada. Esta circunstância fê-lo
crer maluco, e tal era a opinião entre os rapazes; não faltava, porém, quem lhe
atribuísse grande instrução e rara inteligência, ambas inutilizadas por um
ceticismo sem remédio. Bonifácio, um dos seus poucos familiares, perguntou-lhe
um dia que prazer achava naquelas reclusões tão longas e absolutas; Tobias
respondeu, que era o maior regalo do mundo.
— Mas, sozinho! tanto tempo assim,
metido entre quatro paredes, sem ninguém!
— Sem ninguém, não.
— Ora, um escravo, que nem sequer lhe
pode tomar a bênção!
— Não, senhor. Trago um certo número
de idéias; e, logo que fico só, divirto-me em conversar com elas. Algumas vêm
já grávidas de outras, e dão à luz cinco, dez, vinte e todo esse povo salta,
brinca, desce, sobe, às vezes lutam umas com outras, ferem-se e algumas morrem;
e quando dou acordo de mim, lá se vão muitas semanas.
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Foi pouco depois dessa conversação
que vagou uma casa de Bonifácio. Ele, que andava aborrecido e cansado da vida
social, quis imitar o velho Tobias; disse em casa, na loja do Bernardo e a
alguns amigos, que ia estar uns dias em Iguaçu, e recolheu-se a Andaraí. Uma
vez que a variedade enfarava, era possível achar sabor da monotonia. Viver só,
duas semanas inteiras, no mesmo espaço, com as mesmas coisas, sem andar de casa em casa e de
rua em rua, não seria um deleite novo e
raro? Em verdade, pouca gente gostará da música monótona; Bonaparte,
entretanto, lambia-se por ela, e sacava dali uma teoria curiosa, a saber, que
as impressões que se repetem são as únicas que verdadeiramente se apossam de nós. Na chácara de Andaraí a
impressão era uma e única.
Vimo-lo entrar. Vamos vê-lo percorrer
tudo, salas e alcovas, jardim e chácara. A primeira impressão dele, quando ali
se achou, espécie de Robinson, foi um pouco estranha, mas agradável. Em todo o
resto da tarde não foi mais que proprietário; examinou tudo, com paciência
minuciosidade, paredes, tetos, portas, vidraças, árvores, o tanque, a cerca de
espinhos. Notou que os degraus que iam da cozinha para a chácara, estavam
lascados, aparecendo o tijolo. O fogão tinha grandes estragos. Das janelas da
cozinha, que eram duas, só uma fechava bem; a outra era atada com um pedaço de
corda. Buracos de rato, rasgões no papel da parede, pregos deixados, golpes de canivete no
peitoril de algumas janelas, tudo descobriu, e contra tudo tempestuou com uma
certa cólera postiça e eficaz na ocasião.
A tarde passou depressa. Só reparou
bem que estava só, quando lhe entraram em casa as ave-marias, com o seu ar de
viúvas recentes; foi a primeira vez na vida que ele sentiu a melancolia de tais
hóspedes. Essa hora eloqüente e profunda, que ninguém mais cantará como o divino
Dante, ele só a conhecia pelo gás do
jantar, pelo aspecto das viandas, ao tinir dos pratos, ao reluzir dos copos, ao burburinho da conversação, se jantava com
outras pessoas, ou pensando nelas, se jantava só. Era a primeira vez que lhe
sentia prestígio, e não há dúvida que ficou acabrunhado. Correu a acender luzes
e cuidou de jantar.
Jantou menos mal, ainda que sem sopa;
tomou café, preparado por ele mesmo, na máquina que levara, e encheu o resto da
noite como pôde. Às oito horas, indo dar corda ao relógio, resolveu deixá-lo
parar, a fim de tornar mais completa a solidão; leu algumas páginas de uma
novela, bocejou, fumou e dormiu.
De manhã, ao voltar do tanque e
tomado o café, procurou os jornais do dia, e só então advertiu que, de
propósito, os não mandara vir. Estava tão acostumado a lê-los, entre o café e o
almoço, que não pôde achar compensação em nada.
— Pateta! exclamou. Que tinha que os
jornais viessem?
Para matar o tempo, foi abrir e
examinar as gavetas da mesa — uma velha mesa, que lhe não servia há muito, e
estava ao canto do gabinete, na outra casa. Achou bilhetes de amigos, notas,
flores, cartas de jogar, pedaços de barbante, de lacre, penas, contas antigas,
etc. Releu os bilhetes e as notas. Algumas destas falavam de coisas e pessoas dispersas
ou extintas: "Lembrar ao cabeleireiro para ir à casa de D. Amélia". —
"Comprar um cavalinho de pau para o filho do Vasconcelos". — "Cumprimentar
o Ministro da Marinha". — "Não esquecer de copiar as charadas que D.
Antônia me pediu". — "Ver o número da casa dos suspensórios". —
"Pedir ao secretário da Câmara um bilhete de tribuna para o dia da
interpelação". E assim outras algumas tão concisas, que ele mesmo não
chegava a entender, como estas, por exemplo: — "Soares, prendas, a
cavalo". — "Ouro e pé de mesa".
No fundo da gaveta, deu com uma
caixinha de tartaruga, e dentro um molhozinho de cabelos, e este papel:
"Cortados ontem, 5 de novembro, de manhã".
Bonifácio estremeceu...
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— Carlota! exclamou.
Compreende-se a comoção. As outras
notas eram pedaços da vida social. Solteiro,
e sem parentes, Bonifácio fez da sociedade uma família. Contava numerosas
relações, e não poucas íntimas. Vivia da convivência, era o elemento obrigado
de todas as funções, parceiro infalível, confidente discreto e cordial servidor,
principalmente de senhoras. Nas confidências, como era pacífico e sem opinião,
adotava os sentimentos de cada um, e tratava sinceramente de os combinar, de
restaurar os edifícios que, ou o tempo, ou as tempestades da vida, iam gastando. Foi uma dessas confidências, que
o levou ao amor expresso naquele
molhozinho de cabelos, cortados ontem, 5 de novembro; e esse amor foi a grande data memorável da vida dele.
— Carlota! repetiu ainda.
Reclinado na cadeira, contemplava os
cabelos, como se fossem a própria pessoa; releu o bilhete, depois fechou os
olhos, para recordar melhor. Pode-se dizer que ficou um pouco triste, mas de
uma tristeza que a fatuidade tingia de alguns tons alegres. Reviveu o amor e a
carruagem — a carruagem dela —, os ombros soberbos e as jóias magníficas — os
dedos e os anéis, a ternura da amada e a admiração pública...
— Carlota!
Nem almoçando, perdeu a preocupação.
E, contudo, o almoço era o melhor que se podia desejar em tais
circunstâncias, mormente se contarmos o excelente Borgonha que o acompanhou, presente
de um diplomata; mas nem assim.
Fenômeno interessante: — almoçado, e
acendendo um charuto, Bonifácio pensou na boa fortuna, que seria, se ela lhe
aparecesse, ainda agora, a despeito dos quarenta e quatro anos. Podia ser;
morava para os lados da Tijuca. Uma vez que isto lhe pareceu possível,
Bonifácio abriu as janelas todas da frente e desceu à chácara, para ir até à
cerca que dava para a outra rua. Tinha esse gênero de imaginação que a
esperança dá a todos os homens; figurou na cabeça a passagem de Carlota, a
entrada, o assombro e o reconhecimento. Supôs até que lhe ouvia a voz; mas era
o que lhe acontecia desde manhã, a respeito de outras. De quando em quando,
chegavam-lhe ao ouvido uns retalhos de frases:
— Mas, Sr. Bonifácio...
— Jogue; a vaza é minha...
— Jantou com o desembargador?
Eram ecos da memória. A voz da dona
dos cabelos era também um eco. A diferença é que esta lhe pareceu mais perto, e
ele cuidou que, realmente, ia ver a pessoa. Chegou a crer que o fato
extraordinário da reclusão se prendesse ao encontro com a dama, único modo de a
explicar. Como? Segredo do destino. Pela cerca, espiou disfarçadamente para a rua, como
se quisesse embaçar a si mesmo, e não viu nem ouviu nada mais que uns cinco ou
seis cães que perseguiam a outro,
latindo em coro. Começou a chuviscar; apertando a chuva, correu a meter-se em casa; entrando, ouviu
distintamente dizer:
— Meu bem!
Estremeceu; mas era ilusão. Chegou à
janela, para ver a chuva, e lembrou-se que
um de seus prazeres, em tais ocasiões, era estar à porta do Bernardo ou do Farani,
vendo passar a gente, uns para baixo, outros para cima, numa contradança de
guarda-chuvas... A impressão do silêncio, principalmente, afligia mais que a da
solidão. Ouvia alguns pios de passarinho, cigarras, — às vezes um
rodar de carro, ao longe, — alguma voz humana,
ralhos, cantigas, uma risada, tudo
fraco, vago e remoto, e como que destinado só a agravar o silêncio. Quis ler e
não pôde; foi reler as cartas e examinar as contas velhas. Estava impaciente, zangado,
nervoso. A chuva, posto que não forte, prometia durar muitas horas, e talvez
dias. Outra cainçada aos fundos, e desta vez trouxe-lhe à memória um dito do
velho Tobias. Estava em casa dele, ambos à janela, e viram passar na rua um cão,
fugindo de dois, que ladravam; outros cães, porém, saindo das lojas e das esquinas,
entravam a ladrar também, com igual ardor e raiva, e todos corriam atrás do
perseguido. Entre eles ia o do próprio Tobias, um que o dono supunha ser
descendente de algum cão feudal, companheiro das antigas castelãs. Bonifácio
riu-se, e perguntou-lhe se um animal tão nobre era para andar nos tumultos de
rua.
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— Você fala assim, respondeu Tobias,
porque não conhece a máxima social dos cães. Viu que nenhum deles perguntou aos
outros o que é que o perseguido tinha feito; todos entraram no coro e
perseguiram também, levados desta máxima universal entre eles: — Quem persegue ou
morde, tem sempre razão, — ou, em relação
à matéria da perseguição, ou, quando menos, em relação às pernas do perseguido.
Já reparou? Repare e verá.
Não se lembrava do resto, e, aliás, a
idéia do Tobias pareceu-lhe ininteligível, ou, quando menos, obscura. Os cães
tinham cessado de latir. Só continuava a chuva. Bonifácio andou, voltou, foi de
um lado para outro, começava a achar-se ridículo. Que horas seriam? Não lhe
restava o recurso de calcular o tempo pelo sol. Sabia que era segunda-feira,
dia em que costumava jantar na Rua dos Beneditinos, com um comissário de café. Pensou nisso;
pensou na reunião do conselheiro ***, que conhecera em Petrópolis; pensou em
Petrópolis, no whist; era mais feliz no whist que ao voltarete, e ainda agora
recordava todas as circunstâncias de uma certa mão, em que ele pedira licença,
com quatro trunfos, rei, manilha, basto, dama... E reproduzia tudo, as cartas
dele com as de cada um dos parceiros, as cartas compradas, a ordem e a
composição das vazas.
Era assim que as lembranças de fora,
coisas e pessoas, vinham de tropel agitando-se em volta dele, falando, rindo,
fazendo-lhe companhia. Bonifácio recompunha toda a vida exterior, figuras e
incidentes, namoros de um, negócios de outro, diversões, brigas, anedotas, uma
conversação, um enredo, um boato. Cansou, e tentou ler; a princípio, o espírito
saltava fora da página, atrás de uma notícia qualquer, um projeto de casamento;
depois caiu numa sonolência teimosa.
Espertava, lia cinco ou seis linhas, e dormia. Afinal, levantou-se, deixou o
livro e chegou à janela para ver a chuva, que era a mesma, sem parar nem crescer,
nem diminuir, sempre a mesma cortina d’água despenhando-se de um céu amontoado
de nuvens grossas e eternas.
Jantou mal,
e, para consolar-se,
bebeu muito Borgonha. De noite, fumado o segundo charuto, lembrou-se das
cartas, foi a elas, baralhou-as e sentou-se a jogar a paciência. Era um
recurso: pôde assim escapar às recordações que o afligiam, se eram más, ou que
o empuxavam para fora, se eram boas. Dormiu ao som da chuva, e teve um pesadelo. Sonhou que
subia à presença de Deus, e que lhe ouvia a resolução de fazer chover, por
todos os séculos restantes do mundo.
— Quantos mais? perguntou ele.
— A cabeça humana é inferior às
matemáticas divinas, respondeu o Senhor; mas posso dar-te uma idéia remota e
vaga: — multiplica as estrelas do céu por todos os grãos de areia do mar, e
terás uma partícula dos séculos...
— Onde irá tanta água, Senhor?
— Não choverá só água, mas também
Borgonha e cabelos de mulheres bonitas...
Bonifácio agradeceu este favor.
Olhando para o ar, viu que efetivamente chovia muito cabelo e muito vinho, além
da água, que se acumulava no fundo de um abismo. Inclinou-se e descobriu
embaixo, lutando com a água e os tufões, a deliciosa Carlota; e querendo descer
para salvá-la, levantou os olhos e fitou o Senhor. Já o não viu então, mas
somente a figura do Tobias, olhando por cima dos óculos, com um fino sorriso
sardônico e as mãos nas algibeiras. Bonifácio soltou um grito e acordou.
De manhã, ao levantar-se, viu que
continuava a chover. Nada de jornais: parecia-lhe já um século que estava
separado da cidade. Podia ter-lhe morrido algum amigo, ter caído o ministério,
ele não sabia de nada. O almoço foi ainda pior que o jantar da véspera. A chuva
continuava, farfalhando nas árvores, nem mais nem menos. Vento nenhum. Qualquer
bafagem, movendo as folhas, quebraria um
pouco a uniformidade da chuva; mas tudo estava calado e quieto, só a chuva caía
sem interrupção nem alteração, de maneira que, ao cabo de algum tempo, dava ela
própria a sensação da imobilidade, e não sei até se a do silêncio.
As horas eram cada vez mais
intermináveis. Nem havia horas; o tempo ia sem as divisões que lhe dá o
relógio, como um livro sem capítulos. Bonifácio lutou ainda, fumando e jogando;
lembrou-se até de escrever algumas cartas, mas apenas pôde acabar uma. Não
podia ler, não podia estar, ia de um lado para outro, sonolento, cansado,
resmungando um trecho de ópera: Di quella pira... Ou então: In mia mano alfin tu
sei... Planeava outras obras na casa, agitava-se e não dominava
nada. A solidão, como paredes de um cárcere misterioso, ia-se-lhe apertando em derredor, e não tardaria a
esmagá-lo. Já o amor-próprio o não retinha;
ele desdobrava-se em dois homens, um dos quais provava ao outro que estava
fazendo uma tolice.
Eram três horas da tarde, quando ele
resolveu deixar o refúgio. Que alegria, quando chegou à Rua do Ouvidor! Era tão
insólita que fez desconfiar algumas pessoas; ele, porém, não contou nada a
ninguém, e explicou Iguaçu como pôde.
No dia seguinte foi à casa do Tobias,
mas não lhe pôde falar; achou-o justamente recluso. Só duas semanas depois, indo a entrar
na barca de Niterói, viu adiante de si a grande estatura do esquisitão, e
reconheceu-o pela sobrecasaca cor de rapé, comprida e larga. Na barca,
falou-lhe:
— O senhor pregou-me um logro...
— Eu? perguntou Tobias, sentando-se
ao lado dele.
— Sem querer, é verdade, mas sempre
fiquei logrado.
Contou-lhe tudo; confessou-lhe que,
por estar um pouco fatigado dos amigos, tivera a idéia de recolher-se por
alguns dias, mas não conseguiu ir além de dois, e, ainda assim, com dificuldade. Tobias
ouviu-o calado, com muita atenção; depois, interrogou-o minuciosamente,
pediu-lhe todas as sensações, ainda as mais íntimas, e o outro não lhe negou
nenhuma, nem as que teve com os cabelos achados na gaveta. No fim, olhando por
cima dos óculos, tal qual como no pesadelo, disse-lhe com um sorriso copiado do
diabo:
— Quer saber? Você esqueceu-se de
levar o principal da matalotagem, que são justamente as idéias...
Bonifácio achou-lhe graça, e riu.
Tobias, rindo também, deu-lhe um
piparote na testa. Em seguida, pediu-lhe notícias, e o outro deu-lhas de vária
espécie, grandes e pequenas, fatos e boatos, isto e aquilo, que o velho Tobias ouviu, com olhos
meio cerrados, pensando em outra coisa.
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Nota:
Texto-fonte: Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II,
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994. Publicado originalmente em Gazeta de
Notícias, de 06/01/1885.