Mostrando postagens com marcador Reminiscências. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Reminiscências. Mostrar todas as postagens

17 novembro, 2012





Minha avó Guiomar
(e eu)

A minha melancolia finca raiz em minha avó Guió. Achei uma foto antiga e vi meu olhar em seus olhos.
Com custo, lembrei do caminho muitas vezes feito a pé: os paralelepípedos da rua larga por onde entrávamos na Mouraria, o Sol refletindo nas pedras do calçamento, Mulheres segurando lindos lençóis e o vento sacudindo os tecidos coloridos. O quartel do exército, a guarita com um soldado imóvel. Descendo a ladeirinha, uma rua estreita à esquerda, Rua do Bângala, casa de minha avó. 
Um casarão que a mim soava estranho. Não existia quintal. Um  tio criava pombos e teve um pombo-correio. Periquitos australianos. Outro tinha uma lâmpada infra-vermelho. Meu avô foi bruto com meu pai na infância. Meu avô fazia lindas e delicadas caixas de madeira. Um outro não era chamado de tio pelas crianças. Minha avó parecia tão triste e cansada, sempre, mesmo quando servia para toda a família um insuperável lombo com batatas assadas e farofa. (As crianças comendo separadas dos adultos, uma sala depois, numa mesa pequena adaptada ao nosso tamanho.) Minha tia sempre tão doce, quando envelheceu parecia a tristeza de minha avó.
Sempre que estávamos lá, nos uníamos, eu e meu irmão mais novo, para penetrar no Casarão de Tavira. Sentávamos no topo da imensa escada de madeira para procurar os poços, os encantos, através de uma abertura discreta que havia na parede para circulação do ar. Era dali que observávamos, em silêncio, a movimentação na sala de jantar. Sentíamos a nuvem, as lâmias, culpas. Gostávamos de subir a Montanha e ouvir  nosso irmão mais velho tocar flauta, um pouco triste, sereno.
Fiz das janelas dos quartos, ameias de um castelo. Vi muita assombração. Escutei o ranger da madeira, pelas frestas, a poeira das ruínas. Dia após dia, o choro triste da Moura Encantada lamentando a sua sorte. D. Ramiro, insone, a escalar paredes.
As mulheres usavam Leite de Colônia e minha avó lamentava  com seus olhos tristes.

M.

20 fevereiro, 2011









Boneca lavadeira-Cecília Menezes


À tarde, chegava a magrinha lavadeira
com seu cheiro bom de sabão.
Contava seus casos de amores e pratos
quebrados, e eu, com minha letra tímida,
enfileirava o rol de roupas.

M.

29 julho, 2010

Foto: Arlete

Num verão qualquer na década de 70, ele levou a mulher e os dois filhos para passar as férias em Ubaíra. Nunca mais voltou.
Nunca mais foi buscá-los.
Nunca mais.

A mulher viveu até o fim como viúva de marido vivo.
A filha viveu com a dor da incompreensão do abandono.
Do filho eu não sei.
Meus primos. Passaram a morar na beira do rio, na casa dos avós.
Na avó, irmã da minha, eu procurava doçura e não achava. Aquele corpo tão magro, ossudo, aqueles cabelos pintados de um preto mais preto que as asas da graúna, aquela boca que mal sorria.
O avô, mais manso, Neném, morreu na rua, só pra confirmar o abandono, só pra ser achado caído no meio-fio, morto, e fazer minha prima sofrer tanto de novo. Antes que levassem para o velório o corpo, ela colocou um travesseiro embaixo de sua cabeça para aliviar o desamparo.

Desde que eu sei que existo, eu tenho muito medo que as pessoas sumam. Porque essa história, e outros acontecimentos, me deixaram essa marca. As pessoas somem. Para nunca.

Martha

04 abril, 2010

Valença

Em minha primeira viagem sem meu pai e minha mãe, no toca disco Benito de Paula cantava, do forno saia pão com queijo e presunto e eu só comia bolo de chocolate e maçã. Todas as noites, chá de folha de laranjeira para adormecer a menina que não conseguia dormir. De um reino distante, a menina queria com o seu pensamento apaziguar as brigas entre seu pai e sua mãe. Oh menina cheia de pensamentos! Minha tia me ensinava a ser mais confiante e entregar a alguém a minha proteção: "se Deus está comigo, quem está contra mim?".
Não me dei por vencida e venci os quinze dias de separação. Minha maior confidente e amiga foi a bicicleta alugada diariamente na praça, eu agora era livre na pequena cidade, veloz, ágil, sozinha e feliz, percorria todas as ruas e becos.
Em um desses dias eu vi uma mãe, magra e mal vestida, batendo com um chicote em seu pequeno filho nu, pedalei, pedalei, e pedalo ainda hoje, com essa cena correndo atrás de mim.

Martha

10 março, 2010


Chris Buzelli
















Desamparo era a menina esperando com o coração na mão.
Desamparo era a menina esperando com lágrima.
Triste e solitária, tão só, a menina só pensava e escrevia, a menina queria, como as outras crianças, esperar confiante.
Mas, na espera, a menina sofria, com alma e estômago transtornados.
A menina olhava e tentava se convencer que alguém viria.

Martha

06 março, 2010

Desamparo

Chris Buzelli





















Desamparada estava eu, na barriga da minha mãe,
enquanto ela passava pela rua do Forte de São Pedro
a caminho do Campo Grande e sentia o cheiro dos peixes
mortos e tremia de medo das peixeiras.
Descia do passeio e atravessava a rua,
perguntando-se aflita:
De que eu tenho medo? De que eu tenho medo?

Martha

28 janeiro, 2010


Desamparo

Desamparo sou eu e meu pai caminhando de chinelos pelo pátio do edifício. Abraçados. Se você parar de sofrer eu lhe dou uma bicicleta, ele dizia.
Eu queria muito uma bicicleta, mas parar de sofrer eu não conseguia.
Há tanta gente pior do que nós, minha filha. Esta era a frase de misericórdia, a que feria mortalmente meu coração. Sofria ainda mais me lembrando dos que sofriam mais que eu.

Martha

22 novembro, 2009

afeto


Adorei participar da abertura do Movimento Artístico Marista Patamares na escola onde trabalho. Foi uma emoção deliciosa.





Leitoras especiais: Giovana, Deni, Luciana, Quézia e Rene.

Fundo musical: Jorge, a gente feliz porque também é da sua companhia
Fez a mágica acontecer e me deu os dois candeeiros: Elival
Me fizeram o convite: Socorro, Ana, Cristina, Merielle e Sandoval
Dicas, cenário e amor fraterno: Enjolras.
Edição-presente: meu amor
H.

28 agosto, 2009













Rosana Rocha





Desamparo:

O nome dele era Ricardo. Magro, com músculos desenhados. Óculos pretos de lentes grossas, míope. Meio 
Fábio Junior, meio José Wilker .

Falava muito, gesticulava. Me contou quando uma prima mais velha o ensinou a beijar.
Na festa de despedida da escola, denunciou: seu vestido é transparente! Uma colega me emprestou uma anágua para encobrir a luz. 1976, éramos crianças com dez anos.
Foi o último dia em que nos vimos.


Martha

09 julho, 2009


Márcia e vó Augusta

Da série: Reminiscências

Vó Augusta era baixinha, toda redondinha, linda. Tinha cintura de pilão e só usavas vestidos. Ela fazia balas de mel deliciosas com gengibre, chá de limão, um arroz bem soltinho, gostoso, com ovos mexidos no ponto. Eu adorava uns quadradinhos de chocolate feitos por ela.
Vó Augusta não é avó de sangue, como dizemos em minha terra, é uma avó de consideração.
Uma vez ela falou do amor para mim e para Márcia. Nos contou que casou com vô Lindolpho aos 17 anos e que antes do casamento tiveram poucos encontros. Se namoravam com o olhar, ela na varanda e ele na rua.
Nos disse uma coisa linda, que jamais esqueci: gostava de deitar com ele, os dois nus, abraçados, e assim ficar conversando...
Vô Lindolpho era um cavalheiro muito charmoso. Sempre gentil, tinha um caderno com poesias escritas por ele numa letra linda.
Lembro quando morreu, tranquilo como merecia, vendo o Jornal Nacional, éramos crianças e Márcia foi lá pra casa. Também fiquei triste e com saudade.
Vó Maria Augusta e vô Lindolpho são uma linda história da minha infâcia. Me mostraram o amor.


M.


10 junho, 2009

Desamparo:

1. parecido com a chuva caindo e
vô Brício dizendo:
"chuva não quebra osso de ninguém" .


2. o pintinho morrendo engasgado
e a gente tentando salvar com óleo de cozinha.

3. eu, bem pequena, faço a oração recém aprendida e
misturo com a letra de uma música, na época,
muito cantada por Roberto Carlos:
"Meu bondoso anjo da guarda que me rege e ilumina
faça de conta que pra você não sou ninguém"

M.


02 junho, 2009


Minha lembrança mais remota: eu, muito pequena, e a mãe de um coleguinha na escola contando história. As cadeiras pequeninas, azuis? O pátio grande, vermelho, a mãe do menino contava a história do homem que roubava crianças e as colocava dentro de um saco. Eu nem respirava de fascínio e terror.
Na praia de Ondina, uma mulher me ensinou a mergulhar sem fechar com a mão as narinas. Respirar forte expelindo o ar pelo nariz, expirar, expirar enquanto o rosto rompe a barra da água, e enfim, inspirar de novo.
Em Ubaíra, conheci o Chupa-imbigo, era um velho mau, se pegasse uma criança desprevenida, chupava todo o seu sangue pelo umbigo. Às seis horas da tarde, a Ave Maria soava triste no alto-falante da igreja, e como ouvidos não se fecham com as mãos, éramos obrigados a escutar toda a canção que ecoava na pequenina cidade incrustada no vale.
Para mim, era a hora mais perigosa dele aparecer. No lusco-fusco da Ave Maria, sob a sonoplastia das cigarras. Às vezes eu estava forte, outras vezes, voltava correndo e ofegante para casa de meu avô.

M.

01 junho, 2009















foto: Haroldo Palojr

Em Valença, uma menina desobediente e malvada chamou sua mãe de cavala. Punição: ficar encantada para sempre em forma de coruja e vagar pela cidade cantando: a cavala, a cavala, a cavala ...

Eu tinha fama de malcriada mas nunca chamei minha mãe de cavala. Mas pelo sim, pelo não, quando essa menina coruja passava piando eu tomava banho com a porta aberta.

M.

12 abril, 2009

Da série: Reminiscências

















Martha e Brício
Ubaíra, 1978


Vô Brício era forte, firme, austero. Se fosse um bicho seria um nelore bem bonito.
Foi prefeito mais de uma vez de Ubaíra e era muito respeitado.
Quando chegávamos de Salvador, ele estava esperando no último batente da escada e ali, ao entrarmos em casa, éramos abençoados.
Quando a viagem era de volta, ele ficava nervoso, nos acordava cedíssimo, muito antes da hora. Meu avô considerava ler uma coisa tão importante e dispendiosa, que nos proibia de ler após o almoço para não atrapalhar a digestão.
Havia um quarto onde as frutas de vez aguardavam amadurecimento. Quando era época, no meio da tarde ele pousava sapotis em minhas mãos. Íamos buscar as frutas maduras, ele na frente arrastando os chinelos. Na casa de meu avô tinha muitas gaiolas com passarinhos. No corredor, um cabideiro na parede com seus chapéus.
Meu avô com setenta anos vacinava o gado sozinho no curral. Meu avô sempre estava de calças, e usou paletó durante muitos e muitos anos. Às vezes, na rede, escorregava a calça de seu pijama, e podíamos ver na alvura da sua pele as suas veias azuis.
Após o almoço, ele tirava um cochilo, e nós, as crianças, não podíamos fazer barulho nenhum . Eu ficava deitada lendo escondido fotonovelas. Ou ia pra o quintal de cima. Ver a vida de cima, era demais.
Quando meu avô teve o primeiro avc, só reconheceu Buduga. Lembro dele deitado na cama na casa de tio Sílvio. Depois, recusou a cadeira de rodas e se recuperou muito bem. Passou um tempo lá em casa, quando eu lia (e adorava) o jornal para ele. Passei no vestibular e
ele disse que já esperava, porque eu lia bem.
Quando minha avó morreu, ele ficou muito triste. O quarto deles era lindo, o único da casa que era forrado, tinha sala de visitas com sofás chiques e portarretratos.
Meu avô era rígido com horários, quando estávamos na fazenda e ouvíamos o relógio da igreja, voltávamos pra casa desembestados para estarmos à mesa às 12, em ponto. Arroz, feijão amassado, cortadinho de chuchu, carne passada. No rádio, Caetano e Gil cantando o hino do Senhor do Bonfim. A sala de jantar recendia a manga espada, sempre em grande quantidade numa bandeja. Num canto, o filtro de barro e os copos marcados com esmalte.
Vô Brício, na cabeceira da mesa, é uma presença marcante em minha infância. É uma pessoa muito importante pra mim.

Estou aqui e choro.
Porque é noite
porque estou sozinha
porque sou cigarra e canto seco
porque sou fruto pêco
porque peco
e perco.
Só a réstia daqueles dias bendizendo:
- Bença, vô
e beijávamos nossas almas
- Deus te abençoe.
Esses dias luzindo confiança e frutas.


Martha

11 abril, 2009

Da série: Reminiscências

Leila e vó Brasília





Não contente com minhas avós, Guiomar e Mariazinha, eu peguei pra mim, vó Brasília.
Vó Brasília era baixinha, usava óculos grossos e vivia com tia Mariana, sua irmã, em uma casa perto do Retiro de São Francisco. Pelo tamanho, pelo jeitinho, ela sempre manteve o ar de menina. Na casa de vó Brasília comíamos maniçoba e ouvíamos sua voz suave e ao mesmo tempo forte.
Existiu uma época em que vó Brasília morou, sozinha, em um apartamento perto do Colégio Bom Pastor. Eu e Leilinha éramos ainda crianças e íamos dormir com ela. Com expressão sapeca ela nos convidava pra "fazer uma fumacinha", e retirava de debaixo do colchão uma carteira de cigarros. Fumávamos as três juntas num ritual meio tribal.
Vó Brasília deixou saudade.
M.

27 março, 2009

Da série: Reminiscências














Litza, minha avó, eu e meu avô Brício. Ubaíra, 1967.

A minha avó Mariazinha era uma cabocla bem magrinha. Com os óculos na cabeça, ela perguntava: onde estão meus óculos, você viu?
Ela tinha uma parreira no quintal e fazia saquinhos de pano para proteger as uvas dos passarinhos.
Seu nome de batismo era Maria Salomé. Gostava de medicar as pessoas, uma vez pingou remédio pra ouvido nos olhos de alguém. E deu certo.
Católica convicta, ficou doida atrás de seu Santo Antônio, uma miniatura marrom. Achou no quarto de Lito, perfilado entre os soldados em guerra no Forte Apache.
Em um dos quartos da grande casa, tinha um nicho lindo, com muitos santos e velas. Lá, rezava todas as noites, pedindo que nada faltasse aos filhos, mas que nunca ficassem ricos. Era tão amiga dos santos, que até hoje nem um bisneto conseguiu enriquecer...
Brigou com Zé Fernando, meu primo, porque chupava um picolé em dia de chuva, mas emendou na mesma frase: "Com um frio desse, menino! Me dá um pedaço ...."
A minha vó trabalhava no correio da cidade de Ubaíra. Eu ficava fascinada com tanta correspondência. Não tenho palavras pra descrever essa emoção de estar no correio onde minha avó trabalhava, na intimidade de quem toca todas as cartas.
A minha avó Mariazinha queria que eu fosse uma boa menina. Ainda sofro até hoje por não saber ser assim tão boazinha. O meu pai sempre falava: dona Mariazinha era uma santa!

Eu enjoada, vomitando a alma, deitada no colo da minha avó. A minha avó fazendo o sinal da cruz onde afligia e dizendo: Nossa Senhora passou por aqui com seu cavalinho comendo capim.

M.

18 setembro, 2008


O rio passava atrás da casa da minha prima Cristina,
do lado oposto à casa de meu avô.
Não podíamos tomar banho porque no rio tinha
Sistosomas e Sanguessugas.
Era um lugar úmido, e eu gostava de ver o rio e a
correnteza.
A casa por onde passava o rio só tinha uma janela.
Dois quartos, um quintal e um basculhante de madeira
sempre cheio de Lagartixas, seres abomináveis.
A frente da casa era a Livraria. Que eu amava.
Nessa Livraria não se vendia livros mas canetas,
adesivos e papéis.
O vizinho, seu Ercínio, criava a Araponga.
Quem ouve o canto da Araponga jamais esquece.
Do outro lado da rua, numa enchente, tio Luiz sentou-se
na janela para pescar.
Apanhou de meu avô Brício, que considerou acinte
tamanha descompustura.
Será que nunca nadei nesse rio? Tenho lembrança
de mergulhos, de ir entrando devagarinho com medo
das Sanguessugas.
Mas não sei se me molhei nas águas molhadas do rio
ou se o mergulho foi nas águas do desvario.


Inspirado em
Aeronauta
e seu Tributo ao rio.


A Chuva de Maria

A Chuva de Maria

Muadiê Maria

Muadiê Maria