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segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Comida & literatura: Virginia Woolf, Um teto todo seu

"(...)O relógio bateu. Era hora de irmos almoçar.

É curioso o fato de que os romancistas têm um jeito de fazer-nos crer que os almoços são invariavelmente memoráveis por algo muito espirituoso que se disse ou muito sábio que se fez. Raramente, porém, desperdiçam uma palavra sequer sobre o que se comeu. Faz parte do consenso dos romancistas não mencionar sopa, salmão e pato, como se sopa, salmão e pato não tivessem importância alguma, como se ninguém jamais tivesse fumado um charuto ou bebido um copo de vinho. Aqui, no entanto, tomarei a liberdade de desafiar esse consenso e de dizer-lhes que o almoço, nessa ocasião, começou com filés de linguado num prato fundo sobre o qual o cozinheiro da universidade espalhara uma cobertura do mais alvo creme, não fossem, aqui e ali, manchas castanhas como as dos flancos de uma corça. Depois disso vieram as perdizes, mas enganam-se se isso lhes sugere um par de aves implumes e escuras num prato. As perdizes, numerosas e variadas, vieram acompanhadas de todo um séquito de molhos e saladas, picantes e doces, cada qual na sua ordem de entrada: batatas, finas como moedas, mas não tão duras; couves-de-bruxelas, folhudas como botões de rosa, porém mais suculentas. E mal havíamos terminado o assado e seu cortejo, o garçom, silencioso, talvez o próprio Bedel numa manifestação mais branda, pôs diante de nós, enrolado em guardanapos, um doce que se erguia em ondas de açúcar. Chamá-lo pudim, aparentando-o assim com o arroz e a tapioca, seria um insulto. Enquanto isso, os copos de vinho tinhamse tingido de amarelo e de vermelho, tinham-se esvaziado, tinham-se enchido. E assim, gradativamente, a meio caminho da espinha dorsal, que é a sede da alma, acendeu-se não aquela luzinha elétrica intensa a que chamamos brilhantismo, que surge de repente e desaparece em nossos lábios, mas o clarão mais profundo, sutil e subterrâneo que é a rica chama dourada do diálogo racional. Nada de pressa. Nada de brilhos. Não sejamos nada mais que nós mesmos. Vamos todos para o céu, e Vandyck é parte do grupo — em outras palavras, como parecia boa a vida, como pareciam doces suas recompensas, como parecia banal este ressentimento ou aquele queixume, como pareciam admiráveis a amizade e a companhia dos semelhantes, quando, acendendo um bom cigarro, a gente se deixava afundar entre as almofadas junto à janela.
...
Ali estava minha sopa. O jantar estava sendo servido no grande refeitório. Longe de ser primavera, era de fato uma noite de outono. Todos estavam reunidos no grande refeitório. O jantar estava pronto. Ali estava a sopa. Era um simples caldo de carne. Nada havia nele que atiçasse a imaginação. Teria sido possível ver através do líquido transparente qualquer desenho que houvesse no próprio prato. Mas não havia desenho algum. O prato era liso. Em seguida veio a carne de vaca com seu acompanhamento de legumes verdes e batatas — uma trindade doméstica, que sugere alcatras de boi em algum mercado lamacento, couves-de-bruxelas murchas e amareladas nas pontas, pechinchas e reduções de preço, e mulheres com sacolas de alças em manhã de segunda-feira. Nenhuma razão havia para reclamar do alimento diário da natureza humana, visto que a quantidade era suficiente e que os mineiros de carvão sem dúvida estariam sentados à mesa para algo menos substancial. Seguiram-se ameixas secas com creme. E, se alguém se queixar de que as ameixas secas, mesmo quando suavizadas pelo creme, são um legume impiedoso (fruta é o que não são), fibrosas como o coração de um avarento e ressumando um líquido semelhante ao que deve correr nas veias dos sovinas que negaram a si mesmos vinho e calor durante oitenta anos, e que ainda não têm boas relações com os pobres, deverá considerar que há pessoas cuja caridade abarca até a ameixa seca. Vieram a seguir biscoitos e queijo, e nesse ponto a jarra de água circulou prodigamente de mão em mão, pois é próprio dos biscoitos serem secos, e esses eram biscoitos até a alma. Isso foi tudo. A refeição estava terminada. Todos arrastaram a cadeira para trás; as portas de vaivém abriram-se violentamente para lá e para cá; logo o refeitório estava esvaziado de qualquer sinal de comida e pronto, sem dúvida, para o café da manhã seguinte. Ao longo de corredores e escadas acima, a juventude da Inglaterra ia batendo portas, cantando. E caberia a uma convidada, uma estranha (pois eu não tinha mais direitos aqui em Femham do que em Trinity ou Somerville ou Girton eu Newnham ou Christchurch), dizer: "O jantar não estava bom", ou dizer (estávamos agora, Mary Seton e eu, em sua sala de estar): "Não poderíamos ter jantado aqui sozinhas?", pois, se eu dissesse qualquer coisa do gênero, estaria bisbilhotando e também me intrometendo na administração secreta de uma casa que, para um estranho, ostenta uma fachada tão distinta de alegria e coragem. Não, não era possível dizer nada parecido. De fato, a conversa esmoreceu por um momento. Sendo a estrutura humana o que é, coração, corpo e cérebro misturados, e não contidos em compartimentos separados, como sem dúvida serão em mais um milhão de anos, um bom jantar é de grande importância para a boa conversa. Não se pode pensar bem, amar bem, dormir bem, quando não se jantou bem. A lâmpada na espinha não acende com carne de vaca e ameixas secas. Todos iremos provavelmente para o céu, e Vandyck, esperamos, virá em nosso encontro na próxima esquina — tal o estado de espírito equívoco e limitado que geram as ameixas secas ao final de um dia de trabalho. Felizmente, minha amiga que ensinava ciências tinha um guarda-louça onde havia uma garrafa atarracada de copinhos (mas deveria ter havido linguado e perdizes, para começar), de modo que conseguimos acomodar-nos junto ao fogo e reparar alguns dos danos causados por aquele dia."

Agradecimentos especiais a Carô Murgel!