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17

aqui estou eu entre demónios e paredes lisas
solicitando certificados bulas para viver melhor à sexta-feira
vale-me não ser ninguém: faziam-me a vida negra
assim basta o cinzento fato completo silencioso com lugar para os olhos
levantar cedo ver passar os carros
estou certo que o que digo já foi dito e selado
agora não me resta poesia alguns dias mais oscilando a cabeça
fazendo que sim

dá vontade de fugir vomitando tudo em volta mas o preço é preciso
se ao menos inventasse a cura do ar podia secar tranquilamente
agora espero pelo meio do escuro para gritar errei! errei! desmanchando o
                                                                                    [cabelo

nada disto é a minha vida!
para que ninguém ouça nas coloridas salas do inferno terceira repartição
onde somos, mas todos, contínuos de comer fora
Melhor seria ter ficado de lado entregue à simplicidade dos caminhos
sabendo que em nenhum lugar está a  minha parte

Ao atravessar as ruas há outros como eu
a jeito para enfiar uma navalha ao fim da tarde
Aqueles para quem o mundo ia ser outro de mãos lavadas
e ficou tudo igual com mais ausentes à mistura
Um dia destes dou baixa dos infernos por motivos de cegueira interna
ou mando-me de um sítio alto
depois não sei se voltarei feito demónio de província
ou ficarei eterno como um exemplo a não seguir


António Franco Alexandre
Poemas
Assírio & Alvim, 1996

11

é altura de perguntar se estamos no inferno, se nada é possível,
se uma pequena letra confunde as estações e os abismos,
se acordo de um sonho em trânsito directo para o pesadelo.
Veja: basta dizê-lo. É muito fácil
acreditar em mim, como se fora um marco telegráfico
que o vento oscila, e corre por dentro
atravessado de vozes, obscuro como um rio transparente,
misturando, no fundo, nuvens, pássaros, limos.

Tudo o leva a crer: o silvo automóvel de ninguém na névoa,
as promessas quebradas, mãos de gesso segurando os patins e o lanche frio
                                                                                           [da véspera,
o desamor tão rápido, e as máquinas onde os dedos repetem batem
na produção de parafusos. Ou palavras com ar de parafusos,
metálicas, brilhantes, úteis perfeitamente
indispensáveis às comunidades e seus cinco mil intérpretes.
E ao fim da tarde todos se deitam nos tapetes húmidos de pó eterno
e oram ao deus da morte enquanto passam as notícias.

E eu impassível descendente
de obscuros francos valencins
que faço inverno dentro no banquete, relógio
incerto a dar as horas quando chega ao fim? O meu inferno
é de onze meses, basta. Quero acordar de mim,
ser de repente o bosque posto em orla
da lisa pista fria. E que surpresa, a mão hábil do vento,
a máscara de nuvens presa rente! nem sei em que ficamos:



António Franco Alexandre
Poemas
Assírio & Alvim, 1996

9

uma vez desaparecido o observador todas as coisas se despenham
em direcção ao buraco na pedra visível imóvel grotesco como uma entranha
aí vão dar os sulcos paralelos na neve e o olhar surdo do falcão
as matilhas de cães na orla do rio o uivo do lobo na beira do penhasco
o pulso impaciente dos corredores deitados na esteira, trocando
minúsculos papéis com destinos a lápis,
voltará não voltará tudo conta e o olhar das mulheres do outro lado do muro
e o passo breve do relâmpago e o futuro a explodir dentro das coisas das
palavras das casas

e o mundo flutua inteiro no ar
o maior cansaço abre-se diante de nós apetecível com ninguém dentro
acabar-se o pequeno engano este mundo não é o nosso mundo, dizes bem mas
do mundo que não é nosso só conheço a brusca pancada quando corta
a pura raiz do ar E o mundo flutua inteiramente só
coisas inexistentes me acordam como portas abertas fechadas
o abraço móvel da carne

Enquanto o mundo, sei, é um inferno descolorido para além das coisas nun-
                                                                                                  [ca vistas,
uma transparência quando sofremos ou quando desejamos
o inexplicável instante da partida. Os corredores, dispostos
em colunas compactas, olham serenamente
o horizonte flexível, vibrante, soando as súbitas pancadas do trovão longínquo,
percorrendo velozes o silêncio da neve eternamente caindo sobre coisa nenhuma,
a terra respirando inteira, como uma folha pousada do lado de fora da noite,
e o seu bafo impaciente, que a luz azul mistura,


António Franco Alexandre
Poemas
Assírio & Alvim, 1996

48

Quando ouço ao telefone a voz que brinca
e canta, sem saber, os dias novos,
pouco me importam tempo, espaço, luas,
ou maneiras sequer de ser humano.
Vagueio pelo ar, e arranco estrelas
ao cenário sem fim do universo;
e faço pobres contas aos cabelos
depenados no chão, verso após verso.
Nada é real, senão o meu desejo,
nem sei de lei nenhuma que não dobre
a dura mansidão da tua boca;
inventou-nos um deus, para que seja
veloz o lume na manhã sem nome
e chama viva a voz que nos consome.



António Franco Alexandre
Duende
Assírio & Alvim, 2002
um moço, em Olinda, amava a palavra «ter»;
«eu acho bonito, ter». Como não tinha nada,
era livre de dar às palavras;

nalgumas não-bocas a palavra «ser»
dá vontade de morrer, já disseram.
Só essa

é a força formal das palavras.
esta não é a estória de um encontro.
foi a laboriosa tarde, no ruído

de passos e gritos, e o som
de exactos motores. através dos dedos escorre
a relva, como a ignorância de um sonho;

o teu corpo deitado tem
um sabor raro a coisas certas
vê: a terra arada e cheia de

guerra, uma coisa eu odeio mesmo
é a guerra: falou:
escrever deus ensina mas a voz

homem só inventou.


António Franco Alexandre
Poemas
Assírio & Alvim, 1996

1

Fosses tu deus, seria eu santo
alimentado a areia e gafanhotos,
sem cessar meditando o único nome
que o horizonte deserto não contém.
Sonho que acordo dentro do meu sonho
para o saber mais certo e mais real;
como o místico leio nas entranhas
da ausência a tua sombra desenhada.
E no entanto és gente, sangue e terra,
corpo vulgar crescendo para a morte;
incerto no que fazes, no que sentes,
e cioso do tempo que me dás.
Porque sei que me esqueces é que lembro
cada instante o que perco e não vem mais.



António Franco Alexandre
Duende
Assírio & Alvim, 2002

18

e no detalhe
habita um deus: partilho
essa convicção simples, dura como um seixo.
de todas as palavras, só uma irá bater
à porta do desconhecido,
entrar no coração, dar as boas-vindas.
e todas poderão ruir, e ela ficará latejando
no sangue das primeiras núpcias.

eu calculo a passagem do estorninho e da poupa, vejo
a exacta emoção da inexacta curva,
o rastro, facilmente luminoso.
a terra cresce para nós, tão rápida nos ramos,
só o vento a detém, um dia
seremos úteis e preciosos como a erva e a cabra,
e ricos de virtudes saberemos
o que fazer para morrer, não morrer, entretanto

ela lateja na núpcia do sangue, inteiramente ignorante
do grande sentido de tudo isto,
egoísta como a primeira mão
que nos tocou,
um destino leviano, sensível, pacato,
depois o sulco deixado reparte as colinas
e o pequeno piano repete
a criação do mundo.


António Franco Alexandre
As Moradas 1 & 2
Assírio & Alvim, 1987

III - Veneza, Travessia

porque amanhece, subindo
a casa calcária, súbitas asas espalhadas
no silêncio da rocha: o próprio asco
da água calcinada, a curva líquida de merda
à beira do palazzo,
& o doce ventre onde uma espiga ardente
jorra na piazza o céu dentro dos vidros.
suba a cá foscari! os dentes
ácidos de sementes quebradas, il manifesto
deitado sobre a cama, junto ao sexo.
desabotoando a camisola verde, dizia «os braços,
& na porta de areia os turistas pacientemente esmagavam
o papel dos chuveiros. dizia, «o torso,
& eu sentia, no quadrado cerrado, o suor
escorrido dos lábios. dizia, «a neve,
algures o vento,
& as lajes molhadas, um resto de cinza
contra os olhos,
enquanto as asas se despiam, vagarosas.
porque amanhece. almoço de bataglia
c/ spaghetti.
mrs. stone roendo as implacáveis unhas.
a mão que dobra, lenta, a dobra dos cabelos.
a flor pousa no pássaro. miragem. quase noite.
vago, de hashish, o acre
minuto de falar. dizia, «ninguém
& o quarto quebrado, as mesas onde o mundo
pousa os dedos, porque
certamente amanhece. dizia, «o medo,
& o ombro levantado ameaçava os dias.
invento. a água,
o testículo de ouro,
a lâmina das folhas. invento. na bicicleta verde,
pousava sobre o pêlo: a flor.
& o quarto quebrado, a franja das falanges
sobre a curva das asas.
a pálida brancura das gavetas.
o crânio do silêncio contra a mesa. in
vento. manhãs, quase se parte, de dentro
das esquinas, dizia, «o sol,
algures o sangue,
& as mãos espalhavam a pele, cobriam
cuidadosas os ossos, o lençol.
noite fora crescia bicicleta verde,
de cornos espetados sobre o olhar deserto.
esmagava, no peito, o papel das sementes. dizia, «o ar,
& repartido o trigo, amanhecia.
a casa, escura. a relva incendiada. e por dentro
da luz, a seiva de calcário. miragem. invento
o sol partido em dois. e quase noite
os degraus encardidos, a cama onde adormece
o moedeiro falso.
colar a boca aos passos, o desejo.
devagar se despindo; dizia «o mar,
algures os astros,
& a boca amealhava o ouro ardido.
invento. o ombro de água,
a ruga onde começa
a brancura das asas. horizontal respira.
a carne mansa, do calor da relva
deitada sobre a cama, junto às lajes.
uma manhã, invento. dentro da chuva, erguido
sobre a cinza, dizia «quase noite,
então amanhecia.
ao fundo, longe, vê: a poeira nos pulsos
& a mão se dobra, lenta, no travão das rodas.
despindo em torno o ar, dizia, «o dia,
& os aviões roncavam sobre a areia.
subindo o céu de vidro,
a casas desertada, ao longe
a cúpula dos sinos, a névoa de são marcos.
ventre que a noite invade,
madrugador o pão dos embarcados. não invento.
papel de azul, as asas. um fio cortado a vento.
inclinado nos olhos, olhava. inclinado nas unhas,
olhava, dizia «amanhece,
porque amanhecia.


António Franco Alexandre
Sem Palavras nem Coisas
Iniciativas Editoriais, 1974

A questão urbana

1.
estas cidades, grés animal, as garrafas de sangue nos passeios,
prenunciam devagarmente um acordar translúcido. o que
movimentam no espaço, e aos bandos
os pássaros decifram sobre o musgo e a hera,
é o mesmo ar que na traqueia queima; e o cimento,
translúcido, o mesmo que nos braços percorreu as veias,
que nos olhos foi lava, que nos brilhou na boca
dizendo: estas cidades, grés animal, um acordar sem boca.

2.
movem nos muros, a vagina mineral das mães
adormecidas, entre os apitos trémulos do aço
e lenços verdes onde ocultam a cara. prenunciam, é certo,
algum visível afastamento das madeiras, algum
pensamento violentado, por isso as coisas permanecem sentadas
e compreensíveis, afastadas de súbito pelo vento oco.

3.
arrebanhados, como cães feitos de água, os dentes
entendem, decifram sobre o grés as patadas da terra,
espalham na violência um musgo que prenuncia a
transparência. foram construídas, assinaladas sobre o mapa por
bandos de pássaros, respondem a algum ódio decisivo,
algum afastamento da violência; o grés, os olhos,
e o próprio desenho aéreo das lágrimas, aonde
se perde pé muito de repente e se afundam as asas
como uma lava dividida, um vidro, a soar junto à boca.

4.
separam, mas esse
é o seu rancor exaltado, a madeira onde furam
as gengivas dos cães, e muito depois brilha o calcário dos dentes.
nasceram de um modo diferente de pousar os ossos
contra o peso da tarde, alguma raiva, algum pedal minucioso,
como quando a sombra do pianista oculta um muro baixo
onde está sentada, ausente ao musgo, a mulher que um dia desejámos.
[...]



António Franco Alexandre
Os Objectos Principais
Assírio & Alvim, 1979

Emersoniana

a oeste são os planaltos, a vida selvagem
que um céu de água recolhe,
um horizonte de coisas por dizer, por acontecer
mas a verdade mais abstracta é a mais prática:
let him look at the stars. tão longe
do seu próprio quarto como da multidão.

por isso os selvagens, que não têm mais
que o necessário,
conversam em figuras.
esta dependência imediata da linguagem
esta radical correspondência das coisas visíveis
nunca perde o poder de afectar-nos.

devemos ir sós, vivos e sós. i must
be myself.
tudo quanto Adão teve, o céu a terra a sua casa,
tudo podes e tens.
keep thy state; come not into their confusion.
constrói, sim, o teu reino, o teu mundo: natureza.



António Franco Alexandre
As Moradas 1 & 2
Assírio & Alvim, 1987

II

Debaixo do colchão tenho guardado
o coração mais limpo desta terra
como um peixe lavado pela água
da chuva que me alaga interiormente
Acordo cada dia com um corpo
que não aquele com que me deitei
e nunca sei ao certo se sou hoje
o projecto ou memória do que fui
Abraço os braços fortes mas exactos
que à noite me levaram onde estou
e, bebendo café, leio nas folhas
das árvores do parque o tempo que fará
Depois irei ali além das pontes
vender, comprar, trocar, a vida toda acesa;
Mas com cuidado, para não ferir
as minhas mãos astutas de princesa.



António Franco Alexandre
Quatro Caprichos
Assírio & Alvim, 1999

XIII

Anda, vou-te mostrar a terra
dos teus pais, avós, antepassados
tão antigos que os podes escolher.
Este aqui é noé, de barba por fazer;
meteu na arca puro e impuro, bem e mal,
inventou o vinho, homem melhor
da sua geração (não é grande elogio),
teve filhos, netos, é de crer que morreu.
Estoutro, não sei bem, era pirata na malásia.
Vês as colinas? São tuas, quando
as olhas a direito. Realmente tuas,
parte de um mundo teu.
Sim, isso são filosofias,
tens razão. ( E tem graça ao ter razão).
Anda daí, vou mostrar-te o colete de forças
onde era costume, sabes, tratar casos assim.



António Franco Alexandre
Quatro Caprichos
Assírio & Alvim, 1999

I

Vou pôr um anúncio obsceno no diário
pedindo carne fresca pouco atlética
e nobres sentimentos de paixão.
Desejo um ser, como dizer, humano
Que por acaso me descubra a boca
e tenha como eu fendidos cascos
bífida língua azul e insolentes
maneiras de cantar dentro de água.
Vou querer que me ame e abandone
com igual e serena concisão
e faça do encontro relatório
ou poema que conste do sumário
nas escolas ali além das pontes
E espero ao telefone que me digam
se sou feliz, real, ou simplesmente
uma espuma de cinza em muitas mãos.



António Franco Alexandre
Quatro Caprichos
Assírio & Alvim, 1999

quero viver o que me dizes, por exemplo

quero viver o que me dizes, por exemplo
a cor precisa das cortinas,
a madeira que torna a água dura,
amanhecer nos campos do inverno.

sou a vítima, o resultado
de uma maneira de inclinar os ombros,
quero dizer a sombra,
do teu silêncio,

acredito, sem razão que se veja, na definição
das ilhas,
o número e o mapa,
as gemas tropicais.

venho encontrar-te para uma traição



António Franco Alexandre
A Pequena Face
Assírio & Alvim, 1983

Ocupam-te as nuvens

Ocupam-te as nuvens, bem vejo
como te cega a dimensão da água,
como ordenas os quartos e os rios
a mesa da brancura e os limites

na rua continuam perguntando
que nome melhor rima com a boca
bem sei que te distraem os cargueiros
a dobra da janela nos cabelos

um sopro é a avenida o horizonte
rasgado pelo meio


António Franco Alexandre
A Pequena Face
Assírio & Alvim, 1983

minhas pequenas dúvidas, e a guerra

1

minhas pequenas dúvidas estabelecem
habitação violenta. furam pelos ossos,
espalham os dedos em volta, os caules
aquecidos de vento, roem
lentamente os pátios inertes,
instalam a dobra azul dos cotovelos,
resistem. Têm, ambígua, a elegância
elementar da água. Dobram
as espigas nos dentes,
conhecem o nervo
estendido no céu.
mexem
os dedos na gaveta, calcário
das costas, vigiam com cuidado
as vísceras dos galos, a variável
rotação dos planetas; enquanto a galáxia
gira em si mesma intensamente inútil.
minhas pequenas dúvidas multiplicam os dentes,
decoram marx, passeiam o silêncio
pela trela.resistem,
furam pelos dedos, as vísceras
intensas do vento, estabelecem
cotovelos completos.
têm
a violência constante dos ossos,
resistem, dobram lentamente
a trela das estrelas,
ferem as vísceras
inertes do silêncio, espalham
em volta a demasia oblíqua
das espigas nos pulsos. lêem
o jornal misturado à saliva, aprendem
sem ruído as máquinas da pele:
minhas pequenas dúvidas resistem
o calcário dos nervos,
estabelecem
habitação inútil,
dobram os ossos ao calor dos pátios.



António Franco Alexandre
Poemas
Assírio & Alvim, 1996

3

se o meu amor fosse
uma chama, ou um farolim de bicicleta,
não teria, decerto, estas mãos telegráficas cantando
à chuva, num pátio sem antepassados;
iria, de pneu sobresselente a tiracolo, até ao cimo
da corola terrestre, só

pelo poder da natureza.
À volta das mesas, um sussurro acompanha
o seu discurso amplo, o esvoaçar sublime
das mangas arregaçadas. Não assim.
Escoa-se na cal, nos fios de tinta,
fica poroso e vil em meio à cinta.

Fosse um braço a romper pedra! E não assim: perdido
dentro de mim, como uma mosca absorta.


António Franco Alexandre
Poemas
Assírio & Alvim

6

quero dizer-te: não morras.
Nem me digas quem és, quem foste, como sabes
a língua que se fala sobre a terra.
Ao lume lanço
toda a vontade de viver, ser vivo,
a cautela do ar, ardendo em torno.
Passarei, terás passado em mim, só quero
dizer-te: não morras nunca, agora, nunca mais.



António Franco Alexandre
Quatro Caprichos
Assírio & Alvim, 1999

8

agora estou na beira do penhasco e não vou voar
como o sublime bicho estratosférico brilhante
de plumas esmeraldas tentativos braços
apenas eu baço de nenhuma asa debruçado
sobre o vidro de água e em baixo
os corredores, dispostos à partida
em músculos compactos, e deles o mais jovem (vestido

de improváveis azagaias) exclama: é esta
a fonte do trovão!, e aponta
um buraco azul mudo nas paredes da pedra, por fora
de mim regresso ao som silencioso da cidade
onde todos os rostos são o papel com linhas de inventário
e as patas dos homens pousam na larga secretária
e ficam, em relevo, caminhando no sangue, e eu queria
para ti, uma cidade sem mistério,

o gelo transparente onde mergulha a imagem
dos corredores, lançados no velocíssimo sossego sem repouso
das palavras trocadas, das bocas e dos braços misturados
pela luz, que é uma areia movediça,
este saber de nós sem ócio e sem negócio, iguais
às portas do trovão, onde o mais sábio
se lança nu compacto deus do fogo e ri



António Franco Alexandre
Poemas
Assírio & Alvim, 1996

21

Um dia abres os olhos e descobres
os inexactos corpos misturados
e ficas sem saber de que maneira
este estranho centauro nomear.
já te espantou o lume, quando viste
uma língua no sonho da saliva,
e te riste, de ser tão branco o sangue
que nas beiras da noite adormecia.
Agora é o teu corpo que procura
na orla da floresta, uma fogueira
onde acordar as mãos de forma humana
e resolver enfim, mas para sempre,
se ser o sacro emblema do horror
ou o primeiro verso de um poema



António Franco Alexandre
Duende
Assírio & Alvim, 2002