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De repente, não chove
e dói-me a alma do lado esquerdo
porque sou torto, sou canhoto,
sou cada vez menos possível
e porque quando não chove passa por ti
e porque quando sou canhoto, quando sou menos,
quando tento ser possível, também passa por ti

E parece outono em junho, e nem maio acabou
é um reboliço, uma cantarolada, uma reviravolta
sem sentido dos sentidos todos surdos,
todos prontos ou prestes e sempre irritantes
a roçar por ti, sabes, pelo que tens de melhor

Então fico púdico: é quando sou ordinário
para esconder o resto por arrasto
e não sei se sei, nem sequer sei se sou
mas dou-te a mão às vezes como um soco às vezes
como um sino, não sei se soa, sei que é pouco sábio
sei que hoje ainda aqui estou e nada puxo
para não cair.

E a chuva é de gancho a chuva é lixada
a chuva há-de vir



Manuel Cintra
Não Sei Nunca Por Onde
Quasi Edições, 2004
E dói-me esse rio de já me não amares
de já me não quereres assim como eu te quero
de não sobressaltares porque sou eu que te espero
em esquinas de lágrima ou sorriso
foi-se o amor chegou o siso
e eu
que não nasci para ter juízo

E dói-me o teu ventre que não afago
como quem depois de amanhã se afoga
e hoje apenas está, dê para o que der
e doa a quem doer

Passam sanguessugas pelos trilhos da memória
umas são mortas, outras são vivas,
outras são glória
de já não existir e teimar em persistir
e eu vou ao vento, sou palmeira seca,
sou teimoso sou frágil sou de teca de cetim
sou uns dias teu, outros assim assim

E dói-me o teu ventre que não afago
como quem depois de amanhã se afoga
e hoje apenas sente, e já pouco quer
para além de seres mulher

E sei que já não sinto o que senti nem sei quem sou
mas seja eu quem for fazes-me falta, ainda és música
perdi a pauta, nada sei cantar, acho que esta conversa
é coça umbigo, vai ter que parar

Mas dói-me o teu ventre que não afago
como quem não sabe nadar
e hoje é de festa, amanhã é de mar
é de mar



Manuel Cintra
Não Sei Nunca Por Onde
Quasi Edições, 2004
às vezes ancorado a um
sítio como a uma palavra
dessas que se gastam
e depois já não se gostam

a um som. dos que entraram
na íris, por uma abertura
na falta de ar, e saíram
para o bolso,
esse beco que temos sempre
de um lado ou de outro
das calças que forram as pernas
que correm na memória, e fogem
levando o bolso
cheio

às vezes ancorado a um
sítio como se fosse às vezes
ancorado a dois.



Manuel Cintra
Bicho De Sede
Ulmeiro, 1986
O cão, atacado por uma forte dor de dentes,
desata a morder. E tudo o que lhe aparece pela frente
é assim posto a sangrar. Homens, mulheres, crianças,
padres, freiras, freiras sem hábito, putas com ou sem
hábitos, omoletas de fiambre, centro comerciais, uma
ou outra pulga, monges habituados, putos desabitados,
gorgulhos de sífilis, em resumo, Lisboa em peso.

De onde vejo o tejo, rapidamente transformado em mar
vermelho, carrega a custo barquinhos de trapo e de
papel que trazem no ventre escassas invasões de dimi-
nutos chineses, cada qual segurando na mãozinha uma
garrafa de coca-cola, a bebida milagre por fim autori-
zada como substituto eficaz de arroz.

Lisboa é uma mulher espezinhada, que procura em
vão o calcanhar capaz de sexo masculino, um toque
de ternura outro de sapato, para abrir parêntesis no
machismo transitório do tráfego lento, e duro, e lento
atado a si mesmo como todos os homens se atam ao
umbigo.

Cidade que não te queixes. Disseram os doutores ao
trepar-te pela virilha que viria um dia, ainda distante,
sejamos prudentes, para levantar um cheiro a maresia
capaz de subverter a lata e berrar de dia. E esperas,
de perna fechada, até morrer de velhice e de virgin-
dade prematura.

Para o exercício de manutenção da calma, convém
tratar urgentemente as dores de dentes nos cães.


Manuel Cintra
Empare(dar)
& etc, 1984

espera-se pelo fim da tarde

Espera-se pelo fim da tarde como quem espera
um barco. O ar em forma de cais.
Na proa estarão vozes de cigarra afogadas em sons de
mel. Os talheres do verão fazendo faísca.

Concentrados nos intestinos do chão, desde um mo-
mento anterior a mim, todos os chilreios como estes,
sacudidos em socalcos contra as paredes do tubo, num
badalar infernal.

Uma bola branca faz ricochete nas arestas de viga.
O som, o eco, o murmúrio, a pequena tendência para
vácuo infinitamente grande, no horizonte de espelhos
face a espelhos, perdendo-se como uma formiga, para
trás, no mais fundo de nós.

É rápido: no fugir do sol, o céu dá uma dentada no dia.



Manuel Cintra
Empare(dar)
& etc - subterrâneo três, 1984

1

Agora que farei de ti de mim, Constança,
que este poema já não vais ouvir.
Agora que os dias passam lentos, cada vez
mais lentos como se caminhassem para o infinito
e que é infinito o silêncio com o qual
te aconchego como posso com as minhas
poucas mãos

Agora que segundo o teu olhar me explica
o caminho está traçado do meu peito
para o desconhecido, cheio de sons e de ti
e de mim já menos perdido nesta floresta
de arranjos pouco musicais excepto talvez
um ou dois bemóis que me deixaste
entalados entre a virilha do futuro
e o abismo da morte, Constança,
essa amiga inegável do descanso
que talvez mereças mas nem assim desejas

Agora que é janeiro e tudo parece outono,
até o frio cheio de folhas que não existem
e te esvoaçam na pele como arrepios
quando me pedes botijas mais quentes
para que a despedida não se faça ainda
e que os meus dedos possam ainda mais
percorrer caminhos sinuosos e simples
entre as tuas têmporas e o dia já esquecido
em que pouco a pouco uma vez nasci

Agora que no escuro do agasalho
te vejo partir contrariada
para uma terra que não conheço,
que não conheces, que sempre trataste
de regresso, que sempre, como a um extra-terrestre
te colocou medo e tristeza e saudades
do desconhecido de onde todos julgam
que vieste e para onde agora te encaminhas,
pequenina e corajosa, gigante como são gigantes
as palavras do mar

Agora que já não vais ouvir este poema
como acreditarei eu que vais ouvir este poema
e que os poemas embora nasçam
não morrem nunca como as gentes
essas gentes por aí desconsoladas
umas por não escrever poemas
outras por nem sequer nascer
outras ainda por não ouvirem, como tu,
o canto dos pássaros que na madrugada
se reuniam para te escoltar o sono
e que depois entre ti e ti reconversavam
entre uma floresta e uma câmara de trinta
e cinco milímetros movida por um amigo
que com mais pressa ainda te antecedeu
nesta viagem estranha
que nos pergunta sempre pelos corpos
quando afinal só os poemas estão vivos
e nós, meros cometas, nos limitamos
a por eles passar

Agora, Constança, que já nada posso
senão ver-te dizer-me cada dia mais baixinho
que tudo vale a pena e que a luz
é o único inevitável caminho
e que a luta é dolorosa mas sábia,
mas viçosa e voraz, cheia de altos,
de baixos, de sins e de nãos,
e sobretudo de clarões que depois, esvaídos,
se parecem contigo que aqui adormeces
mais tranquila do que os campos de violetas
onde me ias procurar

Agora que a solução
para que oiças este poema
está na equação do mundo
e na minha voz tão curta
nada mais de momentos consigo
senão acertar ritmos e contigo
uma a uma as badaladas respirar

Acabou-se o vento,
e se o cuco ainda caminha
é porque o desafio tremendo dos segundos
o alimenta em curvas e rectas
desalmadas na sua reconversão

Acabou-se a cantiga, a suave lengalenga
dos dias que amam dias que amam vozes
e que transformam com trabalho
o que era apenas isto, e passa
a poderosamente fazer parte do mundo,
esse que apesar do desprezo continua,
redondo como uma pera
e evidente como o vazio

Acabou-se o sangue,
e era sangue que eu agora te queria dar
e era um sopro mais inteiro
e era magia da tal que me ensinaste
mas dou comigo sentado e com as minhas
poucas mãos a nada mais poder
que aconchegar o teu silêncio
e guardar para depois tudo o que trago
nos olhos pendurados do teu mundo
que talvez passe a ser agora, afinal
também o meu, ou talvez já o fosse,
Constança, perdoa-me a momentânea
e translúcida confusão

E agora
que já não vais ouvir este poema,
agora que os melros se calaram
e que o outono de janeiro implacável chegou,
vais ter que me dar uma das tuas
muitas mãos,
vou ter que sossegar a mágoa e o mistério
que separa os corpos e une as almas
para depois, quando a lua finalmente o permitir
eu verificar de novo que me ouves, Constança,
e de uma vez por todas tudo em mim sorrir

25 de janeiro de 1992

Manuel Cintra
Infinito o Silêncio
Edição do autor, 1998

Capa e arranjo gráfico de Vitor Silva Tavares


1- crisálida

dissolver o cansaço na aspirina o açucar e a angústia
a lembrança no sono o tropeço os falhanços, ligar
com cimento, construir

chorar de vez em quando às escuras para a febre descer

polir palavras com escova colocá-las com pinça
no interior, derramá-las num jarro sem vinho sobre o papel,
deixar secar, recortar, recompor, calar gritos, escrever

sonhar os poemas que não se escreve, escrever os poemas
[que não.

podar as plantas nos filhos, mostrar os frutos, o caroço,
o saco de luxo, a hora de ponta, suor, depois lavar, levar
o peito à rua, receber os outros, perdê-los, trocá-los,
devolver este par de mãos àquele mar, afogar em esforço
a carótida torcida do tempo, parar sempre noutra esquina,
fugir à vertigem com o prazer das alturas, perder,

permanecer sentado até à dor nos ossos, cronometrar paciências,
aprender na lentidão a única saída,
rápida

e envelhecer.
acreditar?



Manuel Cintra
Bicho De Sede
Ulmeiro, 1986