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Não é música

Não é música o que ouvimos.
Não é de água este brilho de prata.

Eu estou aqui sobre as pontes do rio.
Outros são os que espreitam pela bruma das margens.

Talvez me lembre:
tu vinhas devagar pelo lado das acácias.
Cingias cada árvore e as colunas, os braços de um
deus cruel, o saber dos templos.

Não é um salmo o que ouvimos.
Não é de harpas este lamento,
não é o ofício das mãos esculpindo um rosto,
não é a palavra de deus que ecoa nas escarpas.

Algures te ocultas e não deixas sinais.
Quem és tu
cujo perfil se desvanece, cuja doçura se perde nos
confins da tarde?

Eu estou aqui onde se unem as margens, onde escurecem
as sendas e as sombras,
onde correm as nuvens, as pedras, as águas.

Outros são os que te aguardam pelo lado das acácias.



José Agostinho Baptista
Biografia
Assírio & Alvim, 2000

Desamor

Deito-me no centro das teias obscuras.
Quebro os espelhos, os belos cristais onde
o meu perfil se descobre,
incólume às navalhas.

Vales tanto, vida,
como esta cicatriz impura, respirando
entre as cinzas,
nesta cama de almofadas húmidas, com
as lágrimas caindo.



José Agostinho Baptista
Agora e na Hora da nossa Morte
Assírio & Alvim, 1998

Fluir

Talvez em ti acabem hoje todas as nascentes,
e nas rugas que, numa e noutra face,
esculpiram o medo e a sabedoria,
se possa ler em comovido olhar
o princípio, o meio e o fim desse caudaloso
fluir que outrora chamámos vida.
Talvez agora, tal como ontem e sempre,
comece a própria morte,
aquilo que nos devora,
aquilo que nos convoca para o silêncio e para
a mão que escreve, sonâmbula e feroz,
estremecendo.



José Agostinho Baptista
Agora e na Hora da nossa Morte
Assírio & Alvim, 1998

Biografia

E tudo se resumiu à evidência do pó.
Uma lenda, um ofício, uma teia de
apertadas mágoas que nunca mais
deixará passar a luz.
A tua luz, sol, lua ou juvenil chama dos
campos livres,
apagou-se violentamente.
Nos aquários da noite caiu uma estrela.
O mundo caiu sobre os teus ombros.



José Agostinho Baptista
Agora e na Hora da nossa Morte
Assírio & Alvim, 1998
Uma estrela passa, cai,
apaga-se no longo instante do trópico.

Longe, a oeste,
uma luz surge, trémula sobre as coisas,
talvez um archote no dorso da ravina.

Amanhã,
nos campos à volta,
menos uma foice cortará as espigas do verão.

Pela noite morrem os homens,
no meio das sombras,
na escuridão dos quartos.
Depois uma luz surge, trémula sobre a dor,
talvez um archote no começo do pranto.

Ele dorme, o meu príncipe.


José Agostinho Baptista
Morrer no Sul
Assírio & Alvim, 1983

Resignação

Estas máquinas que a humidade não oxida,
estas sondas em que nenhuma chama, nenhum
clamor
se levanta ao longo das tuas veias,
tudo prepara, quase em segredo,
a maldição das searas frias.

Jazes, pálido e em silêncio,
como uma vela que a brisa de outros dias, de
outro mar,
foi apagando lentamente,
enquanto ouvias os búzios e o eco das fúrias.



José Agostinho Baptista
Agora e na hora da nossa morte
Assírio & Alvim, 1998
Oh,
prodígio dos prodígios, o leão, o tigre, os rapazes.
E eles voavam, os irmãos do sul,
esses anjos perdidos na tenda das assombrações.
Ao fundo era a morte. E pela morte tu crescias.

Cada um quadro assim,
o rumor dos dedos, dos teus prateados anéis, de alguns
pincéis.
Um sarcófago os há-de conter, um adeus santificado sobre
o talento dos aflitos, dos malditos.

Sim, os amigos partem, elegem os covis, e o lobo espreita
com o metal das suas garras.
Desapaixonados lugares para onde eles partem, os amigos,
e devagar se apagam,
frente aos ecrãs.

Ausentes, gerando a ausência.



José Agostinho Baptista
O centro do universo
Assírio & Alvim, 1989

Comovem-me

Comovem-me ainda os dias que se levantam
no deserto das nossas vidas.

Dos belos palácios da saudade
não resta a impressão dos dedos nas colunas
fendidas, e nada cresce nos pátios.

Muito além, depois das casas, o último
marinheiro continua sentado.
Os seus cabelos são brancos, pouco a pouco.

Aqui, tudo se resume a algumas tâmaras que
secaram ao sol,
longe do orvalho,
das fontes que pareciam nascer de um olhar
turvo sobre a sede da terra.

Comovem-me ainda as palavras que dizias
aos meus ouvidos aprisionados pela música.
Comovem-me as cadeiras vazias, no pátio.

Lembro-me sempre de ti.



José Agostinho Baptista
Esta voz é quase o vento
Assírio & Alvim, 2004

O verão

Estás no verão,
num fio de repousada água, nos espelhos perdidos sobre
a duna.
Estás em mim,
nas obscuras algas do meu nome e à beira do nome
pensas:
teria sido fogo, teria sido ouro e todavia é pó,
sepultada rosa do desejo, um homem entre as mágoas.
És o esplendor do dia,
os metais incandescentes de cada dia.
Deitas-te no azul onde te contemplo e deitada reconheces
o ardor das maçãs,
as claras noções do pecado.
Ouve a canção dos jovens amantes nas altas colinas dos
meus anos.
Quando me deixas, o sol encerra as suas pérolas, os
rituais que previ.
Uma colmeia explode no sonho, as palmeiras estão em
ti e inclinam-se.
Bebo, na clausura das tuas fontes, uma sede antiquíssima.
Doce e cruel é setembro.
Dolorosamente cego, fechado sobre a tua boca.



José Agostinho Baptista
Biografia
Assírio & Alvim, 2000