Dois verões tinham passado.
Sentou-se na areia em frente ao ponto que perscrutava no mar disposto a esperar. Aos poucos aproximava-se da costa nadando na sua direcção. Era ela, confirmou.
Saíu enrolada numa onda de água, espuma e areia, levantou-se sorridente e caminhou para ele:
-Como sabias que era eu?
-Só conheço uma pessoa que enfrenta este mar sozinha.Vês alguém na água?
A pulsação acelerava quando o via ao longe, ao passar mirava-o de soslaio com receio de olhares cruzados. Era moreno de olho verde, sem dúvida o rapaz mais "giro" daquele Verão.
Ele parecia nem dar por ela e quando finalmente se conheceram uma noite no café da praia, só tinha olhos e conversa para a amiga mais velha que vivia na América. Conversas de gente vivida, como se isso fosse possível com 18 anos.
Naquele tempo sem internet ou telemóvel, o café passou a ser naturalmente o ponto de encontro após o jantar e invariavelmente acabavam a noite em casa da amiga. Mas a frivolidade da conversa entediava-a, houve alturas em que tentou mudar-lhe o rumo em vão, sentia-se transparente!
Na quarta noite decidiu não ir, em vez disso foi andar nos altos baloiços da praia, costumava fazê-lo em noites de luar. Começava devagar ganhava balanço com as pernas e ninguém a parava naquela alegria vertiginosa. Com a cabeça caída para trás, olhava o céu riscado pela fuga das estrelas, quando foi interrompida:
-Pára!
Era ele ali à sua frente. O atrito dos ténis na areia foi travando o baloiço, as mãos dele agarraram as correntes e trémula ouviu-o confessar não conseguir esconder por mais tempo como gostava de tudo nela, o sorriso, o olhar e a pele morena.
Não lhe deu tempo nem discernimento para responder, puxou-a a si enlaçou-a e beijou-a, ela de cabeça à roda, com o chão a fugir-lhe debaixo dos pés pensou que ia desfalecer.
Foi o seu primeiro beijo e nos dias que se seguiram andou na estratosfera: piorou da surdez natural aos 16 anos, a mãe chamava-a ela não ouvia, olhava sem ver o movimento de bocas sem sons. A realidade era tão boa que sonhava acordada e inexplicavelmente nunca mais conseguiu ler livros aos quadradinhos.
Nos encontros na praia quase deserta dos pescadores, protegidos pelas dunas trocavam beijos e abraços e olhavam-se em silêncio congelando o tempo. Na realidade passavam horas até ela se esgueirar e correr em direcção àquela imensidão azul. Desafiava-o entrando nas vagas e a vontade de estar com ela levava-o a enfrentar aquele mar bravo também.
No dia em que o chão lhe voltou a fugir debaixo dos pés, tinha ido com a mãe às compras na vila. Em frente da confeitaria viu-o através da montra e de olhar já turvo ainda vislumbrou a "amiga". Segurava na mão um embrulho e sorria.
Envolta num turbilhão de sentimentos entrou em casa num pranto eminente adiado pelo pedido da mãe para preparar os legumes, tinha de sair depois do jantar.
Pegou numa cebola, cortou-a em rodelas tão finas quanto pode, sempre a chorar repetiu a operação até acabar com todas. Atirou-se às cenouras e aos alhos que transformou em picadinho, enquanto dissertava sobre a falsidade do ser humano e tudo o que de negativo possui essa raça, cortou-se no dedo indicador. Enxugou as lágrimas no pano de cozinha e o sangue e fixou aquela natureza morta, assassinada e esquartejada na bancada, 5 cebolas, 4 cenouras e 2 alhos franceses, ocorreu-lhe uma cena dramática do filme do ano, ao som da Cavalgada das Valquírias. Foi então, enquanto cortava os pimentos em tiras, que se apoderou dela um sentimento crescente de vingança pela dupla traição e os cortes com a faca tornaram-se mais precisos e lentos. A mãe mexia nos frascos das especiarias, o seu olhar recaiu sobre o piripiri, mas logo abandonou a ideia pois outro atraiu a sua atenção. Agora sim aquele ingrediente perfeito daria consistência ao seu plano.
Depois do jantar caminhou nervosa mas decidida ao encontro dos dois, nem deu pelo desacato entre a mulher dum pescador e uma turista francesa, tal era a sua concentração.
Nessa noite preparou ela o cacau em casa da amiga a quem entregou uma caneca e só depois a ele sem o fitar, dirigiu-se à porta de entrada, abriu-a e fugiu dali para fora só parando em casa.
De manhã custou-lhe muito acordar e nesse dia nem saíu de casa, a realidade já não lhe interessava preferia sonhar a dormir, mas no seguinte a mãe impaciente ordenou:
-Levanta-te!
-Vou ao super comprar pimenta que desapareceu. A tua amiga veio cá outra vez e quer falar contigo, deixou um presente. Não demoro mas espreita a cor do assado no forno. Quando voltar quero ver-te de pé!
Quando se viu só tentou conciliar as ideias, a mãe deixava-a muitas vezes confusa, sabia que só as mães conseguem pensar em tanta coisa diferente e dar tanta ordem em simultâneo.
Tirou o frasco da pimenta preta do bolso dos calções e apressou-se a colocá-lo junto às outras especiarias na cozinha, dirigiu-se à sala e curiosa pegou no embrulho.Desfez o laço bonito e rasgou o papel. Uma caixa de bombons, um cartão com um coração enorme e duas iniciais M e C. E se o arrependimento matasse ela tinha-se finado ali.
Agora 2 anos depois, ali estava ele de novo.
Voltaram ao passado com o tema inevitável Chocolate e Pimenta, a sua inicial era um C de Chocolate a dela deveria ser P de pimenta ou picante e não M, ou seria o M de Malagueta?
Entre risadas ela confessou só ter provado os bombons, depois de alguém ter comido o primeiro. Falaram da amiga que não voltara, provavelmente casara com um americano. Houve um momento sério em que ele lhe perguntou porque tinha desaparecido da sua vida, um mês após o episódio picante.
"O essencial é invisivel à vista", foi a frase de um livro preferido que lhe veio à cabeça, hesitou e sem querer magoá-lo respondeu com um encolher de ombros, beijou-lhe a face, sorriu , correu em direcção ao mar e nadou até se tornar num ponto.
Quis o acaso que se cruzassem 2 anos mais tarde em Lisboa, ele divorciado tinha duas gémeas, ela universitária e ainda em busca da essência.
Ele não chegou a saber que ela encontrou o que procurava, teve 2 gémeos e não voltou a enfrentar marés vivas.
40 cl de leite gordo