8.12.11

Chocolate (e) picante


Dois verões tinham passado.
Sentou-se na areia em frente ao ponto que perscrutava no mar disposto a esperar. Aos poucos aproximava-se da costa nadando na sua direcção. Era ela, confirmou. 
Saíu enrolada numa onda de água, espuma e areia, levantou-se sorridente e caminhou para ele:
-Como sabias que era eu?
-Só conheço uma pessoa que enfrenta este mar sozinha.Vês alguém na água?

A pulsação acelerava quando o via ao longe, ao passar mirava-o de soslaio com receio de olhares cruzados. Era moreno de olho verde, sem dúvida o rapaz mais "giro" daquele Verão.
Ele parecia nem dar por ela e quando finalmente se conheceram uma noite no café da praia, só tinha olhos e conversa para a amiga mais velha que vivia na América. Conversas de gente vivida, como se isso fosse possível com 18 anos. 
Naquele tempo sem internet ou telemóvel, o café passou a ser naturalmente o ponto de encontro após o jantar e invariavelmente acabavam a noite em casa da amiga. Mas a frivolidade da conversa entediava-a, houve alturas em que tentou mudar-lhe o rumo em vão, sentia-se transparente!
Na quarta noite decidiu não ir, em vez disso foi andar nos altos baloiços da praia, costumava fazê-lo em noites de luar. Começava devagar ganhava balanço com as pernas e ninguém a parava naquela alegria vertiginosa. Com a cabeça caída para trás, olhava o céu riscado pela fuga das estrelas, quando foi interrompida: 
-Pára! 
Era ele ali à sua frente. O atrito dos ténis na areia foi travando o baloiço, as mãos dele agarraram as correntes e trémula ouviu-o confessar não conseguir esconder por mais tempo como gostava de tudo nela, o sorriso, o olhar e a pele morena.
Não lhe deu tempo nem discernimento para responder, puxou-a a si enlaçou-a e beijou-a, ela de cabeça à roda, com o chão a fugir-lhe debaixo dos pés pensou que ia desfalecer. 
Foi o seu primeiro beijo e nos dias que se seguiram andou na estratosfera: piorou da surdez natural aos 16 anos, a mãe chamava-a ela não ouvia, olhava sem ver o movimento de bocas sem sons. A realidade era tão boa que sonhava acordada e inexplicavelmente nunca mais conseguiu ler livros aos quadradinhos. 
Nos encontros na praia quase deserta dos pescadores, protegidos pelas dunas trocavam beijos e abraços e olhavam-se em silêncio congelando o tempo. Na realidade passavam horas até ela se esgueirar e correr em direcção àquela imensidão azul. Desafiava-o entrando nas vagas e a vontade de estar com ela levava-o a enfrentar aquele mar bravo também.
No dia em que o chão lhe voltou a fugir debaixo dos pés, tinha ido com a mãe às compras na vila. Em frente da confeitaria viu-o através da montra e de olhar já turvo ainda vislumbrou a "amiga". Segurava na mão um embrulho e sorria.
Envolta num turbilhão de sentimentos entrou em casa num pranto eminente adiado pelo pedido da mãe para preparar os legumes, tinha de sair depois do jantar.
Pegou numa cebola, cortou-a em rodelas tão finas quanto pode, sempre a chorar repetiu a operação até acabar com todas. Atirou-se às cenouras e aos alhos que transformou em picadinho, enquanto dissertava sobre a falsidade do ser humano e tudo o que de negativo possui essa raça, cortou-se no dedo indicador. Enxugou as lágrimas no pano de cozinha e o sangue e fixou aquela natureza morta, assassinada e esquartejada na bancada, 5 cebolas, 4 cenouras e 2 alhos franceses, ocorreu-lhe uma cena dramática do filme do ano, ao som da Cavalgada das Valquírias. Foi então, enquanto cortava os pimentos em tiras, que se apoderou dela um sentimento crescente de vingança pela dupla traição e os cortes com a faca tornaram-se mais precisos e lentos. A mãe mexia nos frascos das especiarias, o seu olhar recaiu sobre o piripiri, mas logo abandonou a ideia pois outro atraiu a sua atenção. Agora sim aquele ingrediente perfeito daria consistência ao seu plano.
Depois do jantar caminhou nervosa mas decidida ao encontro dos dois, nem deu pelo desacato entre a mulher dum pescador e uma turista francesa, tal era a sua concentração.
Nessa noite preparou ela o cacau em casa da amiga a quem entregou uma caneca e só depois a ele sem o fitar, dirigiu-se à porta de entrada, abriu-a e fugiu dali para fora só parando em casa.
De manhã custou-lhe muito acordar e nesse dia nem saíu de casa, a realidade já não lhe interessava preferia sonhar a dormir, mas no seguinte a mãe impaciente ordenou: 
-Levanta-te!
-Vou ao super comprar pimenta que desapareceu. A tua amiga veio cá outra vez e quer falar contigo, deixou um presente. Não demoro mas espreita a cor do assado no forno. Quando voltar quero ver-te de pé! 
Quando se viu só tentou conciliar as ideias, a mãe deixava-a muitas vezes confusa, sabia que só as mães conseguem pensar em tanta coisa diferente e dar tanta ordem em simultâneo.
Tirou o frasco da pimenta preta do bolso dos calções e apressou-se a colocá-lo junto às outras especiarias na cozinha, dirigiu-se à sala e curiosa pegou no embrulho.Desfez o laço bonito e rasgou o papel. Uma caixa de bombons, um cartão com um coração enorme e duas iniciais M e C. E se o arrependimento matasse ela tinha-se finado ali. 

Agora 2 anos depois, ali estava ele de novo. 
Voltaram ao passado com o tema inevitável Chocolate e Pimenta, a sua inicial era um C de Chocolate a dela deveria ser P de pimenta ou picante e não M, ou seria o M de Malagueta?
Entre risadas ela confessou só ter provado os bombons, depois de alguém ter comido o primeiro. Falaram da amiga que não voltara, provavelmente casara com um americano. Houve um momento sério em que ele lhe perguntou porque tinha desaparecido da sua vida, um mês após o episódio picante.
"O essencial é invisivel à vista", foi a frase de um livro preferido que lhe veio à cabeça, hesitou e sem querer magoá-lo respondeu com um encolher de ombros, beijou-lhe a face, sorriu , correu em direcção ao mar e nadou até se tornar num ponto.

Quis o acaso que se cruzassem 2 anos mais tarde em Lisboa, ele divorciado tinha duas gémeas, ela universitária e ainda em busca da essência.
Ele não chegou a saber que ela encontrou o que procurava, teve 2 gémeos e não voltou a enfrentar marés vivas.
Chocolat chaud épicé de Vianne, do livro le petit Larousse de Recettes de Famille de Joanne Harris et Fran Warde. 

Ingredientes para 2

40 cl de leite gordo
1/2 vagem de baunilha cortada longitudinalmente
1/2 pau de canela
1 malagueta cortada em duas e sem sementes
100 g de chocolate negro(70% cacau)
açúcar mascavado a gosto
chantilly, raspas de chocolate e cognac ou amaretto

Tradicional
Aqueça o leite com a baunilha, a canela e a malagueta, deixe ferver um minuto. Incorpore o chocolate em pedaços ou ralado até fundir, adicione o açúcar.Retire do lume e deixe em infusão 10 minutos, depois remova as especiarias. Leve ao lume até ferver e sirva numa chávena guarnecido com chantilly, pedaços de chocolate ou com um traço de cognac ou amaretto.

Thermomix
Coloque no copo o leite, a baunilha, a canela e a malagueta e marque 6 minutos, 90ºC, velocidade colher inversa. Junte o chocolate ralado ou em pedaços e selecione 3 minuto à mesma velocidade e temperatura.Remova as especiarias e sirva numa chávena guarnecido com chantilly, pedaços de chocolate ou com um traço de cognac ou amaretto.

Esta publicação foi uma das vencedoras do passatempo Chocolate e Picante da Casa das Letras, divulgado no Gourmets amadores, pela amiga Suzana. 
Fica a advertência: o picante deve ser usado com moderação;)

27 comentários:

  1. Spicy chocolate? Yum!

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  2. Adoro chocolate quente e este tenho mesmo que experimentar. Também gostei muito da história.

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  3. Picante como todas as histórias de amor devem ser :)

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  4. Dei por mim perdida na história. Fantástico post, pela história, fotos e receita.
    Beijinhos

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  5. De repente pensei que estava eu mesma, junto ao mar, a observar esses dois personagens da tua história, tão bem e cativante que está. Ainda não me sinto preparada para essa mistura malagueta/chocolate. Ainda só os consigo usar em receitas separadas. Bjs grandes.

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  6. Parabéns! O texto está lindo e a receita fantástica!

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  7. Querida Helena!
    Que estória linda! adorei!!!
    beijinhos
    Sofia

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  8. Os encontros e desencontros da vida. Pelo menos o encontro do chocolate com o picante parece ser eterno :)

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  9. Tudo lindo como já é habitual :)

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  10. Helena,
    Delicioso post, tanto o conto, lindo, como o chocolate que deve ser delicioso.
    Beijo.
    Vânia

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  11. Entre filmes, livros, ondas do mar e chocolate com picante, só podia mesmo ficar um post lindo! :))
    Bjs

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  12. Helena querida,

    Obrigada. Uma vez por outra fico sem palavras. É que todas me parecem demasiadamente óbvias e ocas. De maneira que fica a única que vai fazendo sentido. Obrigada.

    Um beijo*

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  13. Bem, também fiquei sem palavras!! Adorei!!

    bjus
    Cila

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  14. Helena,
    O chocolate picante é a bebida certa para tomar enquanto se lê o teu conto. Muito bonito. Muito azul de mar, do mar que eu adoro.
    Beijinhos

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  15. Helena,
    Adorei a história. Leva-nos de volta aos amores da adolescência! As fotos estão, como sempre, lindas.
    Bjnhos

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  16. Que linda história!!!!!Que fantástica receita e a combinação perfeita. eu gosto do chocolate com um sutil apimentado, é perfeito.....bjs gina

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  17. Adorei, fiquei com muita vontade desse chocolate!

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  18. Amiga, durante a leitura da tua história dei por mim a rir, a ficar zangada, a pensar em vingança também e a esboçar um sorriso enorme no final. Adorei! Só faltava mesmo provar esse chocolate!
    Beijocas

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  19. Menina, chocolate com pimenta é algo que eu simplesmente A-M-O :}
    Abraços!

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  20. Helena! Juro que perco respiração quando vejo e leio os seus posts! É um prazer verdadeiro para os meus olhos! Fico sem palavras... Obrigada por essa maravilha!
    Vou me concentrar mais uma vez na sua receita! :)
    Bjs

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  21. Humm

    Que delícia!!!

    Boa semana!

    Beijão Jê!

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  22. Olá Helena!
    Esta história fez-me lembrar as paixões assolapadas (e desencontradas) que tive na minha adolescência e juventude...
    Mas nunca me lembrei de recorrer ao frasco da pimenta ;)
    Já ao chocolate, recorri várias vezes como terapia...
    Um beijinho
    Teresa

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  23. Linda história, Helena!Choclate, já sabes que eu amo!!

    Bjs

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  24. Chocolate e picante...GOSTO!
    Vou experimentar, como não tenho exactamente todos os ingredientes vou improvisar,o aspeto é irresistível!
    Maravilhoso o seu Blogue Helena, as fotos tão cuidadas e lindas, os textos, as receitas! Tudo o que eu gostaria que fosse o meu...um bebé recém nascido.
    Bom ano novo.
    Bjs.

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